O que é fazer arte, se não abraçar uma ideia inerentemente fútil e perseverar tanto nela que, eventualmente, algum significado é espremido de sua arquitetura absurda? A primeira pessoa que ergueu uma plataforma elevada no meio de uma arena, e ali em cima contou uma história com pessoas fingindo ser outras pessoas, certamente precisou dessa perseverança. Que conceito maluco, afinal, esse que passamos a chamar de teatro. Pois então: Grand Theft Hamlet, documentário que acompanha a tentativa de um par de atores sem trabalho - e a parceira de um deles, uma cineasta - de encenar o clássico de William Shakespeare dentro do ambiente virtual do GTA, durante a pandemia de covid-19, resgata principalmente esse poder da arte de transformar o absurdo em real, e investigar o que podemos aprender com ele.
O experimento de Sam Crane e Mark Oosterveen, muito claramente, nasceu do tédio. Enquanto fugiam da polícia em uma sessão aleatória de GTA Online, já no início de 2021, quando as ordens de reclusão da pandemia pesavam uma tonelada em cima do peito enclausurado de todos nós, eles toparam com um teatro a céu aberto no cenário expansivo do jogo, e o que começou como uma brincadeira (Crane encenando um trecho de Hamlet no palco e sendo imediatamente morto a tiros por outro jogador) logo se tornou uma tentativa honesta de montagem teatral, e também uma obsessão. Grand Theft Hamlet também entende que é da natureza das ideias mais estapafúrdias se agarrarem no âmago daqueles que se dedicam a torná-las realidade. Quando se faz algo por nada além de satisfação pessoal, ou talvez nem isso - só para dizer que foi capaz de fazê-la -, as coisas tendem a escapar do razoável muito mais fácil.
Como a pessoa olhando para esse experimento de fora para dentro, a codiretora Pinny Grylls (que assina o filme ao lado de Crane) fica com a responsabilidade de nos prover a perspectiva necessária para entender a história toda, e seus efeitos nas pessoas que o conduziram. Grand Theft Hamlet é largamente “filmado” do ponto de vista de sua personagem no jogo, e muitas das cenas e diálogos mostrados aqui, especialmente aqueles que exploram a vida dos protagonistas fora do ambiente virtual, ficam devendo em autenticidade. Esse é, afinal, um filme sobre teatro, e não lhe falta impulso dramático - é difícil culpar Grylls por recorrer à encenação para expressar os processos emocionais que deram combustível ao empreendimento do parceiro, porque o filme precisava mesmo mostrá-los, mas é inegável também que esses trechos mais rígidos se chocam com o charme dos momentos menos ensaiados da produção.
É quando abraça o caos inerente de ser ambientado dentro de um universo virtual que não foi construído para o drama, ironicamente, que Grand Theft Hamlet encanta. A graça do filme, afinal, é ver um monte de indivíduos dedicados (seja como ofício ou como hobby) ao teatro encontrarem uma forma de se juntar para fazer teatro em um ambiente não condutivo a ele. A inadequação dos movimentos dos personagens, a dificuldade de fugir das distrações violentas que são a base do jogo, a dificuldade de encaixar um empreendimento tão fútil na rotina cheia de utilidades de cada um… é aí que está o conflito de Grand Theft Hamlet, e é um conflito imediatamente relacionável para qualquer pessoa que tenta deixar espaço para arte em sua vida. GTA não foi feito para comportar Hamlet, afinal, mas não tão menos do que o mundo fora dele - temos tanto espaço para Shakespeare por aqui quanto por lá.
E, ainda assim, nos contorcemos e nos esprememos para caber nesse espacinho. O ponto de vista de Grylls brilha nos trechos do documentário em que seu parceiro e os colegas de elenco estão declamando o texto de Hamlet dentro dos ambientes virtuais, e ela mina significado dos cenários e dos personagens que os povoam. Achar o encaixe entre o “som e a fúria” do Bardo e aquele mundo de Sol à pino, horizontes infinitos e misérias calculadas da Rockstar, é o grande desafio da ideia executada aqui. Que o filme consiga celebrar esse casamento entre as duas coisas prova que fazer arte, e continuar fazendo arte, é sobre continuar agregando significado aos textos que refletem nossa humanidade comum, e continuar encontrando pessoas que querem agregar conosco - independente da erosão de nossas rotinas ou dos padrões de nossa sociedade, e independente de quão absurdo possa parecer.
O mundo pode estar acabando, enfim, mas o teatro é pra sempre.
Ano: 2024
País: Reino Unido
Duração: 91 min
Direção: Pinny Grylls, Sam Crane
Roteiro: Pinny Grylls, Sam Crane
Elenco: Pinny Grylls, Jen Cohn, Mark Oosterveen, Sam Crane