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Filmes
Crítica

Enterre seus Mortos encara o fim do mundo com perplexidade

Marco Dutra toma o caminho do maximalismo para expandir o universo do livro

Omelete
4 min de leitura
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30.10.2025, às 17H53.
Atualizada em 30.10.2025, ÀS 18H05
Enterre seus Mortos encara o fim do mundo com perplexidade

O diabo é ardiloso, e sua influência sobre pessoas e situações pode se expressar de tantas formas que ele se presta a um irresistível deus ex machina em filmes de horror. É uma solução conveniente e efetiva porque encerra bem tanto o clima de mal-estar social quanto a narrativa mais convencional, dos pequenos prazeres do gênero, os susto e o gore. Robert Eggers e Ari Aster estão aí sendo tratados como luminares e não me deixam mentir, usando o capeta para aplicar um verniz de propósito e conclusão tanto na narrativa lacônica (A Bruxa) quanto na difusa (Hereditário).

Mais de uma vez o diretor Marco Dutra usou a possessão demoníaca como instrumento de catarse em seus filmes. A princípio, Enterre seus Mortos não permite essa aproximação. O livro de Ana Paula Maia trabalha num registro realista de neonoir e faroeste contemporâneo para acompanhar a rotina de Edgar Wilson, que trabalha recolhendo restos de animais mortos das estradas. Quando o fantástico se insinua sobre a paisagem agrária desolada, é mais de forma alegórica, para aproximar nosso fim de civilização cotidiano das imagens de escatologia que se esperariam de um Apocalipse de fato.

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O filme usa esse western/noir difuso de Maia apenas como pretexto para compor uma paisagem mais variada de escatologia. Então temos ainda a corrupção policial, os fantasmas do passado e os acertos de conta na estrada, presentes no livro, mas acrescentados de folk horror (a seita religiosa e seus rituais) e distopia carpenteriana (o ambiente urbano como espaço sitiado) com toques de scifi e satanismo. Ainda que Dutra não se limite ao registro realista, as adições não soam como uma mutilação do livro, e sim como fenômenos naturais àquele universo - que afinal tem muito a ser exorcizado, literal ou metaforicamente.

As adições têm algo de aleatório, ainda assim. Selton Mello interpreta Edgar Wilson em chave de contenção porque o próprio protagonista parece perdido em meio a tantos estímulos que desafiam sua noção de unidade daquilo que ele vivencia. Tudo que acompanhamos em cena tem um caráter de esquete por conta disso; cenas são encadeadas para acrescentar peças num jogo maior de compreensão daquele mundo, mas na prática funcionam mais por seu valor isolado de recompensa (o susto numa cena de fantasma, o ridículo do rito fundamentalista, o gore da violência da estrada). 

Dutra nunca se furtou a aproveitar dos prazeres do horror, sempre em busca de colocar os códigos do gênero a serviço de um olhar sobre os mal-estares contemporâneos. É compreensível que Enterre seus Mortos seja maximalista na adaptação do livro, dado que o diretor vinha de um terror de época, Todos os Mortos, de 2020, que operava todo nas sutilezas das recompensas não assumidas como tal. Havia uma demanda reprimida aí por virtuose? Enterre seus Mortos sugere que sim, pela própria maneira como planos e composições de quadro são pensados, com movimentos longos de câmera e bastante informação visual nos planos gerais.

Da mesma forma, nossa crise de convívio e alteridade chegou ao auge com a pandemia, então parece compreensível que Enterre seus Mortos (rodado sob os protocolos da Covid) seja um filme também muito difuso e tateante em relação à sua busca por sentido num mundo em desarranjo. Não é um filme difuso como Hereditário, cinicamente indeciso entre a franqueza e a farsa; está mais para um filme desconcertado com a pandemia mesmo, como aliás são muitos daqueles, produzidos no período, que acabaram por escolher o maximalismo para responder à nossa crise de sentidos.

Enterre seus Mortos pode ser uma experiência frustrante por conta disso, incapaz de fazer assentar uma gravidade de fato nas situações extremamente graves que vai arranjando em torno de Edgar Wilson. Por outro lado, o filme encerra um período nesses últimos dez anos em que o cinema brasileiro como um todo perdeu o receio de encenar as recompensas do terror. Boa parte dos longas de gênero que se produz aqui - e que ganha projeção internacional, como no caso de Gabriel Mascaro - recorre ao fantástico para melhor expressar seu olhar sobre a realidade sociopolítica do país. Parcela considerável dessa trajetória passa pelo cinema de Dutra e Juliana Rojas e talvez, de forma inconsciente, o diretor se considere em dívida por isso. O maximalismo de Enterre seus Mortos não deixa de ser uma forma de reivindicar uma autoridade nesse cenário, e é com visível satisfação que Dutra a exercita, seja brincando com o diabo ou não.

Nota do Crítico

Enterre seus Mortos

2025
128 min
País: Brasil
Classificação: 16 anos
Direção: Marco Dutra
Roteiro: Marco Dutra
Elenco: Selton Mello, Marjorie Estiano
Onde assistir:
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