Crítica: Terça Depois do Natal
Todo homem com duas mulheres é, assim como Papai Noel, só um sujeito ausente
A banalidade do dia a dia, interações mecânicas, horários e compromissos cumpridos por inércia interessam ao diretor romeno Radu Muntean pelo que revelam das nossas angústias. E não há período do ano mais angustiantemente enfadonho do que todo o arranjo que envolve uma véspera de Natal.
Em Terça Depois do Natal (Marti, Dupa Craciun, 2009), Paul está diante de um impasse rodrigueano: a preparação do seu Natal promete ser duplamente torturante porque ele é casado com Adriana há dez anos e há seis meses tem como amante Raluca, a dentista da sua filha. Assim como o trágico herói de Nelson Rodrigues que não aguenta mais almoçar duas vezes em casas diferentes, Paul tem que conciliar a agenda de fim de ano da sua família com a da família de Raluca.
festival o rio
terça depois do natal
Tudo muda no dia em que as duas mulheres se encontram, durante uma consulta da filha. Muntean roda a cena na sala da dentista - ao todo deve dar quase dez minutos - com um plano só, sem cortes. A câmera a meia distância lhe permite colocar os três adultos e a criança simultaneamente em quadro, em linha. Nenhum deles é privilegiado com close-ups. É uma cena registrada com a mais completa isenção, e ainda assim a tensão é sufocante.
Atos que parecem corriqueiros (encher uma geladeira com cervejas, por exemplo) implicam decisões profundas. É esse tipo de angústia que Radu Muntean tenta capturar quando encena trivialidades. Os planos longos só reforçam a intenção de atentar para o mundo com austeridade (haverá outra cena sem cortes mais adiante, mas não é justo contar do que se trata). Para Muntean e outros cineastas romenos contemporâneos seus, o corte em certas cenas significaria uma tomada de posição, um julgamento.
Já era assim no filme anterior do diretor, Boogie, também exibido em festival no Brasil, mas em Terça Depois do Natal, por toda a carga dramática que os fins de ano carregam, a trama tende a pegar o espectador com mais força. Assim como o Papai Noel, com seus presentes entregues sem que as crianças percebam, Paul, com seus dois amores, com suas preocupações, presente em quase todos os planos do filme, na verdade é uma ausência.