Um jovem e empolgado cineasta, mais um artista que tem o dom de falar sobre tudo sem (aparentemente) perder o fio da meada, divididos por uma empresária esperta e mão de ferro. É essa a equação que levanta a fervura de Coração Vagabundo, documentário sobre Caetano Veloso e primeiro longa a levar a assinatura de Fernando Grostein Andrade.
Menino prodígio, a história de Andrade e seu filme fazem a linha conto de fadas. Aos vinte e poucos anos, o rapaz chamou a atenção de Paula Lavigne (eterna empresária e então mulher de Caetano), que o agenciou como câmera de bastidores. Ou seja, para registrar um rápido making-of da turnê do cantor, que preparava o lançamento do disco de covers A Foreign Sound.
coração vagabundo
No final do caminho, dois anos depois, a história já era outra. Caetano já tinha passado por São Paulo, Rio de Janeiro, EUA e Japão, e Andrade acumulava quase 60 horas de imagens e pensatas do cantor. Nada mais natural do que aproveitar esse bom material de uma forma mais inteligente.
Apesar de algumas cruezas e maneirismos, Coração Vagabundo é uma ótima estreia, livre de grandes presunções. Andrade ainda é um cineasta em formação e documentarista sem fronteiras, mas se resolve bem com sua vontade obsessiva em percorrer o caminho de seu entrevistado. Se peca em não questionar o que Caetano diz (afinal, de certa forma, é um "filme encomendado" pelo próprio documentado), o rapaz acerta no erro: deixa o músico falar e falar e falar. Coisa que o baiano sempre fez muito bem - concorde-se ou não com o teor de suas eternas pensatas.
Auxiliado por roteiro e montagem, Caê brilha no picadeiro que foi armado sobre sua cabeça. Conta piadas, opina e discursa displicentemente sobre tudo: música americana e tropicalismos, Deus e doces de feijão, velhice, cinema e Gisele Bündchen.
Correndo por fora, Andrade tem o toque de Midas no currículo, ao registrar fantásticos depoimentos do círculo de amizades de Caetano, aproveitando para fugir do óbvio - Gilberto Gil e outros baianos não abrem a boca por aqui. Pedro Almodóvar, com quem na época o músico gravara participação no filme Fale com Ela, revela ao diretor que Paula Lavigne é uma de suas musas inspiradoras. Outro que participa, e é dono da cena mais emotiva do longa, é o falecido cineasta Michelangelo Antonioni.
Coração Vagabundo é um documentário, mas não se propõe a biografar Caetano. Muito pelo contrário, Andrade não está interessado em posterizar sua história. E é aí que está a grande força - e a rápida poesia - do longa.
As gravações (entre 2003 e 2005) focaram Caetano em um momento chave da sua carreira recente. Gravando um disco de covers em inglês - incluindo sua polêmica versão para "Come as you are" de Kurt Cobain -, ele dava o ponto de partida para sua atual faceta, com dois discos de verve roqueira sob o suvaco e uma banda mais jovem nas mãos. Ao mesmo tempo, na vida pessoal, o casamento em crise com Paula Lavigne culminava na separação do casal.
A convivência entre marido e mulher é o verdadeiro subtexto de todo o filme. É ela a primeira pessoa a aparecer na tela, abrindo a porta do banheiro para que ele apareça nu diante da câmera. Para os espectadores, o tratamento de Paula com Caetano durante todo o filme pode causar estranheza e desconforto.
Mais adiante, em um vale japonês, Caetano aparece acabrunhado. É o único momento de todo o filme em que se recusa a falar, deixando bem claro o desquite. É no mesmo país, aliás, em que o músico é totalmente desarmado - quando um monge budista diz em português tacanho que "Coração Vagabundo" é sua música preferida e o baiano não consegue reagir.
A canção que dá título ao filme é, de certa forma, a primeira gravação de Caetano (ao lado de Gal Costa no disco Domingo, de 1967). E ali, ao lado da separação de Paula, acaba encerrando um ciclo de décadas na vida do cantor. Daí pra frente, o homem virou roqueiro e tenta perseguir sua juventude transviada, a mesma do diretor que o persegue. E que, na sua afobação juvenil, nunca deve ter imaginado o quanto seu registro era providencial.
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Ano: 2008
País: Brasil
Classificação: 10 anos
Duração: 60 min
Direção: Fernando Grostein Andrade