Bem montado, Cover-Up destaca mentalidade antissistema em extinção
Documentário sobre jornalista estadunidense questiona narrativas conciliatórias
Créditos da imagem: Cena de Cover-Up (Reprodução)
Há de se admirar um filme que sabe onde terminar. Cover-Up, documentário sobre o jornalista estadunidense Seymour Hersh, acaba em uma fala do biografado que não só resume quem ele é, e por que sua vida foi como acabamos de testemunhar, mas também por que ver um filme sobre ele é importante exatamente hoje: Hersh é uma espécie em extinção, e isso é perigoso.
O final bem colocado, é claro, é só uma última tacada talentosa da dupla de diretores Laura Poitras (vencedora do Oscar de melhor documentário por Citizenfour) e Mark Obenhaus. Até porque os dois se mostram, nas 2h anteriores de Cover-Up, bastante desenvoltos na arte de costurar acontecimentos e manejar a linha do tempo de uma vida.
E não é como se a missão fosse fácil: embora Hersh tenha desempenhado um papel em momentos emblemáticos da história dos EUA, ele nunca foi o protagonista deles, e sua mídia (quase) sempre foi a palavra escrita – em outras palavras, material de arquivo é escasso. Cover-Up por vezes sofre com isso, lançando mão de imagens genéricas que diluem o seu impacto, mas na maior parte do tempo o filme dança ao redor dessa escassez através de entrevistas com o próprio Hersh, sem deixar de fora os espinhos de sua personalidade desconfiada e sua retórica defensiva.
Assisti-lo é interessante porque ele nunca parece menos do que real. Como qualquer um de nós faria, ele se encolhe diante de críticas, e se mostra ferozmente reservado sobre tudo o que possa transformá-lo de contador de histórias em personagem. O entrevistado relutante para acabar com todos os entrevistados relutantes, enfim. E Poitras, especialmente (a voz dela é sempre ouvida durante os momentos de conflito), sabe cutucar sem se intrometer.
Acima de tudo, no entanto, recapitular a carreira de Hersh deixa transparecer que seu trabalho jornalístico sempre foi baseado na fundação verdadeira de que há algo escondido embaixo do tapete dos EUA… e, provavelmente, algo ainda pior escondido debaixo da sujeira que você encontrar por lá.
O filme elenca contextos em que a inflexível resistência de Hersh a adotar a “narrativa oficial” sobre a qual todo o seu país descansa foi saudada como heroísmo (quando ele descobriu horrores perpetrados pelo Exército no Vietnã e no Iraque, por exemplo), mas também contextos em que virou vilania (quando ele contestou o mito da Casa Branca de Kennedy, ou desafiou a moralidade do governo ucraniano durante a guerra com a Rússia). Poucas vezes um documentário sobre uma figura “controversa” foi tão claro em seu resgate histórico de quando, e por quem, a controvérsia em questão foi criada.
O grande trunfo de Cover-Up é compilar as contra-narrativas ouvidas e relatadas por Hersh durante sua carreira, e entender o papel que elas desempenharam no correr da história dos EUA – um país patologicamente indisposto a confrontar a sua própria cultura de violência, a sua tendência a desumanizar o outro, a corrupção absoluta do seu poder absoluto (ou, ao menos, percebidamente absoluto) na política global. Num mundo em que é muito mais fácil aceitar as histórias que nos contam, é preciso gente que não se contente e conte outras.
Muito frequentemente, de fato, é um caso de vida ou morte.
*Cover-Up foi exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Ainda não há previsão para a estreia do filme no circuito comercial brasileiro.
Cover-Up
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