Coração das Trevas: animação brasileira é fascinante adaptação da obra de Conrad
Filme de Rogério Nunes localiza história que foi adaptada para Apocalypse Now num Brasil infernal
Créditos da imagem: Festival do Crio
Coração das Trevas, a clássica história de Joseph Conrad, se tornou – muito graças a adaptações cinematográficas poderosas como Apocalypse Now – praticamente um modelo de narrativa. A ideia de ir rio abaixo até o encontro da figura de Kurtz, tão envolto em sua neurose que ele parece ter atingido uma espécie de sanidade, oferece campo fértil para artistas. Uma descida ao inferno. Em direção a uma audiência com um homem antes tido como inquebrável mas agora perdido em seus delírios. Aqui, é fácil sentir a atração perigosa da loucura e do desespero, quer seu nome seja Charles Marlow, Benjamin Willard ou, na adaptação brasileira exibida no Festival do Rio, o tenente Marlon.
Esta versão, uma animação dirigida por Rogério Nunes, é, acima de tudo, um trabalho ímpar de localização deste já eterno conto de obsessão e segredos. Situado num Rio de Janeiro distópico mas imediatamente reconhecível, o novo Coração das Trevas vê a cidade como única e puramente uma zona de guerra. Deixamos as selvas africanas de Conrad (ou do Vietnã, na versão de Coppola) pelas favelas, agora ainda mais perigosas enquanto traficantes e a “polícia miliciana” trocam tiros, foguetes e golpes. O uso de drones é constante. A violência parece uma fase exagerada de Call of Duty. Marlon ainda se apega a um senso inabalável de justiça, mas seus colegas, superiores e adversários parecem contentes em apertar o gatilho diante de tudo que se move.
A elite toda deixou a cidade, e a porta foi fechada depois que ela se foi. Com traços que vão do rabisco surreal a caricaturas dinâmicas, Coração das Trevas começa quando o caos ali presente dá o próximo passo – um grupo misterioso explodiu todas as saídas do Rio, e as autoridades suspeitam que um ex-capitão da PM chamado Kurtz, antes um herói nacional e alguém sem piedade diante do inimigo, é a cabeça por trás destes ataques. Cabe a Marlon, num barco que parte primeiro pelas margens do oceano e eventualmente sobe rios que vão até o centro de favelas misteriosas, encontrá-lo.
O grosso do filme segue a navegação rumo a Kurtz. Este grande preparo para o confronto com o capitão é turbulento em muitos sentidos, e em meio a esses balanços, o filme de Nunes sofre particularmente com os personagens, sempre menos interessante que o mundo ao seu redor, e com dilemas e relacionamentos que são levantados mas nunca explorados. Coração das Trevas nem sempre aproveita nossa atenção da melhor maneira, mas sua apresentação gera uma curiosidade que beira ao irresistível. Zarpamos correnteza adentro de olhos sempre abertos.
Nesta rota, Nunes nos apresenta à tripulação daquela embarcação, trazidos à vida por um ótimo elenco que inclui Caio Blat, Tâmara David, Babu Santana e o ator francês Vincent Cassel. Estes personagens, mesmo quando unidimensionais, oferecem variações fascinantes e brasileiríssimas das figuras de Coração das Trevas, ou mais especificamente de Apocalypse Now, como é o caso de Marcela Diaba, uma travesti líder de facção que usa o mesmo chapéu de Tenente Kilgore de Robert Duvall, e rivaliza seu gosto por situações bombásticas.
Também fascinante é a transformação da seita de Kurtz numa espécie de religião de matriz africana, e de maneira mais geral, como toda a discussão do ciclo de violência essencial ao texto de Conrad se vê (infelizmente) em casa no Brasil. Em determinado momento, um personagem desafia a consciência preto-no-branco de Marlon afirmando que há policiais corruptos e bandidos íntegros, mas a visão apocalíptica de Nunes sugere que não sobrou um justo sequer.
Essa visão vêm à vida com cenas pulsantes, que muitas vezes se aproveitam da limitação da animação – que de fato tropeça quando há muita ação, um problema agravado pela montagem frenética que prejudica o ritmo de diversas sequências e diálogos – para dar a Coração das Trevas um ar de surrealismo perfeito para esse pesadelo febril. No meio da jornada, Marlon e seus colegas se deparam com ilhas feitas de lixo e palafitas cobertas pela névoa. Em ambos casos, os cenários são simplificados, como se existissem num vácuo, assim sublinhando o clima de estranheza da trama, como se estivéssemos de fato em outro mundo. Como dizem, a necessidade é a mãe da invenção.
Invenção, aliás, é a melhor qualidade de Coração das Trevas. É verdade que alguns movimentos do roteiro parecem surgir do nada, povoando com ideias criativas mas subdesenvolvidas um texto que sacrifica, por exemplo, o desenvolvimento de um (ou mais) protagonistas interessantes – Marlon é o menos cativante dos personagens. O filme, contudo, está claramente estourando as costuras com tanta potência que, apesar destes erros pontuais, é difícil não sair do filme profundamente impressionado.
Coração das Trevas
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