Como Fotografar um Fantasma é filme evocativo sobre história virando História
Charlie Kaufman e Eva H.D. provam mais uma vez sua sintonia criativa
Créditos da imagem: Cena de Como Fotografar um Fantasma (Reprodução)
Há uma efemeridade na poesia que não pertence a quase nenhuma outra forma de arte. O poeta, embora tenha como qualquer outro artista a capacidade de encapsular épocas e marcar gerações, frequentemente age no pique de um diarista – eis o que estou sentindo agora, no lugar em que estou sentindo agora, da forma como estou sentindo agora. Por mais difíceis que sejam de colocar no papel, versos são relâmpagos na garrafa: tão breves quanto espetaculares.
Por isso é curioso ver quando um poeta e um cineasta se juntam, como acontece com Eva H.D. e Charlie Kaufman em Como Fotografar um Fantasma. O cinema é, por definição, uma das artes mais onerosas – filmes chegam ao público após uma dolorosa extensão de tempo onde foram concebidos, escritos, filmados, editados, retocados, corrigidos, testados, vendidos para distribuição, promovidos, etc e tal. Feito de poesia e executado como filme, portanto, o novo curta de Kaufman e H.D. é um produto híbrido fascinante… e até um pouco metalinguístico.
Em Como Fotografar um Fantasma, acompanhamos dois personagens (Jessie Buckley e Josef Akiki) que vagam por Atenas, capital da Grécia, logo depois de morrerem. São portanto, como o título entrega, espíritos – ela, uma fotógrafa curiosa e hedonista, que registra tudo ao seu redor; ele, um tradutor retraído e apaixonado, remoendo um amor não realizado. A própria Eva H.D. provém a narração que os guia pela tela, não exatamente em uma história, mas em uma ruminação sobre as histórias que vivemos, e como elas se encaixam na História do lugar onde as vivemos.
Atenas, muito mais do que Buckley ou Akiki, é o sujeito da câmera de Kaufman e seu diretor de fotografia Michal Dymek (A Garota da Agulha). E a cidade, sob o olhar dos dois, perde a aura de guardiã do mundo antigo para ser arrastada de vez para a contemporaneidade suja, suada e terrosa que envelopa todas as metrópoles. É um processo que rima (perdoem o trocadilho) com o que a poesia de Eva H.D. tenta fazer, também, com a cidade – entender como se misturam, nela, o que há de novo e velho sobre o status quo europeu, como desaparecem memórias e entram em seu lugar uma imitação barata delas.
Como Fotografar um Fantasma, enfim, como muitas grandes poesias e muitos grandes filmes, é uma perseguição constante pelo inalcançável. Seu título já o diz, propondo um registro concreto do invisível, enquanto seu texto busca, numa chave de melancolia quase-romântica, entender os espectros deixados pela marcha imparável do tempo nas ruas de uma cidade grande como qualquer outra. É uma história com nada de especial, e tudo de único. Tão efêmera nos sentimentos que demonstra quanto firme nas ideias que levanta.
Kaufman e Eva H.D., que têm demonstrado sintonia há anos em colaborações menores (um poema dela está em Estou Pensando em Acabar com Tudo, último longa do cineasta, lançado em 2020), provam por fim que há uma ponte direta entre poesia e cinema – quando você se esforça o bastante para construí-la.
*Como Fotografar um Fantasma foi exibido na 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Ainda não há previsão de estreia para o filme no circuito comercial brasileiro.
Como Fotografar um Fantasma
How to Shoot a Ghost
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