Brasiliana exagera na veneração por uma história que poderia ser mais fascinante
Joel Zito Araújo aposta no convencional e, em certo ponto, resvala no chapa-branca
Créditos da imagem: Cena de Brasiliana: O Musical Negro que Apresentou o Brasil ao Mundo (Reprodução)
A história da Companhia Brasiliana, uma trupe de teatro brasileira que se tornou fenômeno internacional entre os anos 1950 e 1970, é um diamante bruto para um documentário. Donos de turnês esgotadas e intermináveis pela Europa por décadas, cobertura digna de celebridade nos jornais dos países pelos quais passavam, aparição em filme estrelado por Sophia Loren na Itália, e shows frequentados por Frank Sinatra, Robert De Niro e mais, os artistas da Brasiliana seguem virtualmente desconhecidos por aqui - ou, ao menos, desconhecidos fora de algumas bolhas específicas de dança, teatro e cultura afro-brasileira. O interesse em trazer a história deles à tona é antropológico, mas também cinematográfico. Algumas tramas “perdidas” só a tela grande pode desenterrar.
É daí que o documentário Brasiliana: O Musical Negro que Apresentou o Brasil ao Mundo tira o seu impulso. O veterano cineasta mineiro Joel Zito Araújo (Filhas do Vento) mergulha com gosto em imagens de arquivo raras, reportagens sobre o grupo produzidas no Brasil e na Europa, registros fotográficos de sua passagem como um furacão de fama e brasilidade por mais de 90 países ao redor do mundo. Melhor ainda, o diretor tempera essas imagens com um projeto gráfico cheio de cinetismo - rabiscos na tela acompanhando o movimento dos bailarinos, nomes que surgem sublinhados em recortes de jornal -, que garante que o filme se mova com a mesma fluidez que o espetáculo original precisava ter para conquistar o público.
O acesso de Brasiliana aos personagens dessa história também é privilegiado. Araújo conversa com dançarinas, coreógrafos, idealizadores e empresários, que se abrem diante da câmera sobre seus sonhos de sucesso, suas histórias suntuosas de turnê, os romances e picuinhas que se desenvolviam ali. O retrato de bastidores é incitante e excitante - o que só sublinha, de certa forma, a decepção quando se percebe que o filme não está muito interessado em ir além de uma escavação histórica. Há um tom de veneração aqui que impede que esse artefato descoberto pelo cineasta receba algo além de um polimento, uma arrumação para ser colocado na prateleira da cultura brasileira. E é uma pena, porque há carne nas entranhas dessa história.
A ofuscação fica mais clara, por exemplo, quando Brasiliana conversa com Haroldo Costa, um dos idealizadores do espetáculo que está biografando, e dedica meros segundos ao momento em que ele é removido da companhia pelo empresário Miécio Askanasy - que daí em diante se apresentaria como figura criativa chave do grupo, inclusive em entrevistas nas quais tomava posse de uma história de criação da qual não participou. Levanta-se a bola de uma usurpação criativa grave, e inclusive simbólica de como o trabalho negro é desvalorizado, explorado e eventualmente tomado no Brasil… mas o filme abandona essa ideia no ar, quase como se não quisesse tocar nela.
Mais adiante na metragem, Brasiliana faz quase a mesma coisa com a degradação criativa do grupo - que eventualmente foi rebatizado de Brasil Tropical, com boa parte da equipe trocada - e sua virada de homenagem a exploração (em certos sentidos, até sexualização) da cultura negra brasileira. Mais uma vez, quando se aproxima de um questionamento de moralidade, de uma questão na qual é possível ouvir lados diferentes e tentar entender efeitos diversos em seus personagens e no mundo que o cerca, o filme de Araújo dá um passo para trás. Talvez a ideia seja não perder o ritmo, até para impedir que o público sinta a estafa da quase 1h30 de metragem. Mas, se for por isso, Brasiliana opera em um medo infundado.
Com uma abordagem mais dedicada aos cantos espinhosos e às nuances, a história da Companhia Brasiliana renderia até mais do que um longa-metragem. É o distanciamento, a vontade de expor esse diamante bruto ao invés de lapidá-lo, que impede este filme de ser mais do que uma boa curiosidade histórica.
*Brasiliana: O Musical Negro que Apresentou o Brasil ao Mundo foi exibido no Festival de Cinema Sul-Americano de Bonito - Bonito CineSUR 2025. Fique de olho no Omelete para a cobertura completa.