Em 2005, Quando foi lançado o livro Crepúsculo, de Stephenie Meyer, o mundo experimentou um dos piores retrocessos da história literária feminina: Bella, a mocinha frágil e tímida, se apaixonava por um menino rico e excêntrico, que escondia um segredo perturbador e que a fazia abandonar toda sua individualidade para girar em torno dele. Tudo isso era regado de mensagens subliminares sobre a nobreza da virgindade e do casamento eterno, típicos da religião da qual é adepta a sua autora. O vampirismo, essa mitologia construída em torno da transgressão, foi filtrada e esterilizada por valores moralistas.
Contudo, ficou em primeiro lugar, gravado nas tendências da época, a ideia do sucesso alcançado com mais uma história de "amor impossível sendo possível". Algum tempo depois, a mesma dinâmica "mulher tímida e homem excêntrico" foi mantida em 50 Tons de Cinza, que ainda adicionou o sexo e o dinheiro à equação. Anastasia vai desvendando Christian, furando suas barreiras, descobrindo seus segredos e - eventualmente - redimindo o moço de seu comportamento emocionalmente asséptico. "Mulher tímida Vs Homem excêntrico"... um clássico da modernidade.
Quem já assistiu a Através da Minha Janela sabe porque essa introdução foi necessária. 50 Tons de Cinza surgiu de uma fanfic de Crepúsculo e, agora, Através da Minha Janela ganha força a partir dessas mesmas bases. Ariana Godoy se junta a Beth Reekles (A Barraca do Beijo) e Anna Todd (After) como autoras que começaram suas obras como fanfics e conseguiram transformá-las em livros e séries de filmes. O efeito colateral dessa tendência é a semelhança brutal com outras histórias já estabelecidas. Esse é, de fato, o conceito em si do que é uma fanfic. Ao mesmo tempo, é assustador perceber como no imaginário dessas autoras, a figura do homem que exala sexo, é rico e perturbado, parece ser a única opção para escrever uma história de amor. Em todos os casos, a menina/mulher "converte" o sujeito ao fazê-lo se apaixonar por ela. Ou ela vira exatamente como ele, como fez Bella.
Para quem tem gosto pela previsibilidade, Através da Minha Janela é o filme perfeito. Tudo acontece quase exatamente da mesma maneira que em 50 Tons de Cinza, e a autora não disfarça. Raquel (Clara Galle) é uma menina tímida e pobre que se sente muito atraída pelo vizinho rico Ares (Julio Peña), um rapaz sombrio, frio e distante. Apesar de todo dinheiro que tem, ele rouba o wi-fi da moça e assim os dois se conhecem e começam uma tóxica relação de muito sexo e muita canalhice. Passando a história pela lente de quem escreve o fanfic, a conversa é outra: Raquel vai driblar as barreiras do descomprometido Ares e fazê-lo se apaixonar por ela. Era só um dos dois usar um chicote e a cópia de carbono estava pronta.
Através do Meu Filtro
Assistir ao filme é enervante. A história do longa é tão rasteira que quando vai explicar o motivo pelo qual Ares é tão inacessível, não resiste a contar a mesma ladainha do "meus pais trabalharam demais e não me ensinaram o que é o amor". Não há absolutamente nenhum enredo; tudo se baseia em cenas de sexo entre o casal, intercaladas com mudanças em Ares que surgem rápido como num feitiço. O rapaz, com seu rosto sem expressões, leva Raquel em seu carro milionário, com motorista, para surpresas extravagantes que vão justificar a permanência dela naquela relação absolutamente equivocada.
O fato de Raquel e Ares serem adolescentes (pelo menos supostamente) é ainda mais alarmante. Ariana queria tanto ter escrito 50 Tons de Cinza, que reimaginou a trama como se ela tivesse acontecido num colegial onde ninguém estuda. Nem os protagonistas - e nem os coadjuvantes - vivem um drama sequer próximo do que é costumeiro às pessoas em sua faixa etária, a escola é só um território que serve para montagens sequenciais de sexo tórrido em todas as suas possibilidades. Não há conflito, nó dramático, crescente, catarse... Tudo é sexo, com meia dúzia de diálogos rasteiros no caminho. O importante, importante mesmo, é Ares se redimir (sem camisa).
É muito curioso, porque ao mesmo tempo em que o olhar da autora é extremamente sexualizado, também é cheio de ingenuidade, como ao escolher dar nomes de deuses gregos para os irmãos Hidalgo ou como ao decidir encerrar o primeiro filme com Raquel "salvando" seu "Grey" da morte numa sequência vexaminosa no baile da escola (que não foi sobre o baile da escola, claro). E ela é egocêntrica, porque Raquel escreve sua história e tem seu momento de sucesso, como se todos estivessem sempre ansiosos por homens cafajestes que só precisam de uma garota tímida para transformá-los em príncipes sensuais, mas monogâmicos. Não há nenhum problema com o erotismo ou com a entrega voluntária ao amor. Contudo, mais que um problema sócio-cultural, Através da Minha Janela não tem história, é vazio, ruim.E lá vai o conto da mulher que acha que vai "transformar" o cafajeste pela enésima vez seguida.
Vamos aguardar, porque as sequências são só uma questão de tempo. Até onde houver interesse, o mercado estará tomado desses enredos cheios de intenções românticas, mas marcados pela total nocividade das relações que constroi.
Através da Minha Janela
Through My Window
Ano: 2022
País: Espanha
Classificação: 16 anos
Duração: 112 minutos min
Direção: Marçal Forès
Roteiro: Ariana Godoy, Eduard Sola
Elenco: Clara Galle , Julio Peña
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