Filmes

Crítica

Assassinos da Lua das Flores tenta se equilibrar em disputa de narrativas

Martin Scorsese revisita velhos formatos na busca por um novo anti-western

Omelete
4 min de leitura
19.10.2023, às 17H07.
Atualizada em 20.10.2023, ÀS 17H59

É muito estimulante que aos 80 anos o cineasta Martin Scorsese continue contando histórias de investigação da alma e que esses filmes sejam, eles mesmos, pequenos laboratórios de possibilidades narrativas. Assassinos da Lua das Flores parte de uma premissa temerária - reparar a injustiça histórica com um povo exterminado a partir do olhar dos seus opressores - e todo o projeto consiste em descobrir se há um filme possível aí, ou seja, se esse ponto de vista justifica sua escolha.

Os oprimidos são os osages, uma nação de nativos americanos que é alojada pelo governo americano num território indígena no Estado de Oklahoma e lá enriquece, no início do século 20, quando descobre petróleo na região. Na trama baseada em fatos, o homem branco opressor é representado pela família do rancheiro William King Hale (Robert De Niro), que cobiça para si essas terras e, para tanto, elege seu recém-chegado sobrinho Ernest (Leonardo DiCaprio) para cortejar uma das herdeiras Osage, Mollie (Lily Gladstone). 

Na rápida introdução que o filme faz, os assassinatos já estão em curso quando Ernest chega em Oklahoma sem muitas perspectivas, depois de lutar na Primeira Guerra Mundial. O que o gabarita como protagonista, além dos belos olhos azuis de DiCaprio? Em inglês, “earnest” significa sincero, zeloso, e é desmantelado pela guerra que vemos Ernest desembarcar no rancho do tio. A narrativa de Assassinos da Lua das Flores é essencialmente a história de como o ex-combatente descobre para si uma segunda oportunidade na vida para se desumanizar.

Scorsese está refazendo aqui um caminho similar ao de Os Bons Companheiros (1990) quando escolhe um novato na família mafiosa para nos apresentar o funcionamento e as implicações desse universo de violência; que a história real de Henry Hill envolva por fim uma traição à Máfia é o mesmo lastro moral que o cineasta utiliza agora para justificar a escolha de Ernest como personagem principal. Nunca duvidamos do amor de Ernest por Mollie, e talvez esse seja o máximo de compaixão que o personagem nos instiga, numa atuação de DiCaprio que remete imediatamente às outras jornadas de desglamurização e ruína física que o ator serviu a Scorsese, em especial em O Aviador (2004).

O fato de o cineasta aparecer pessoalmente e em primeiro plano no filme, na cena metalinguística do rádio-teatro, já denota que Scorsese tem plena consciência de que jamais poderia recontar a história dos osages desconsiderando seu lugar de homem branco e “herdeiro” da opressão. Numa época em que se entende que os lugares de fala são a primeira e principal autoridade num processo de criação artística, Scorsese contorna o politicamente correto e defende, a seu modo, o direito de contar a história dos osages: assumindo seu personalismo e examinando-o sem condescendência.

O filme que resulta disso está pedindo, portanto, para ser analisado com o rigor que suas escolhas implicam. Na melhor das hipóteses, Assassinos da Lua das Flores é um épico disruptivo, um anti-western, que sugere que se enxergue o Velho Oeste não pela ótica do civilizacionismo e do Destino Manifesto e sim como produto distorcido da cobiça e do oportunismo. É um anti-western na medida em que o faroeste amplifica os pequenos gestos, torna míticos os homens de valor, e aqui os homens representados por Ernest têm muito pouco a mostrar além do ridículo do seu privilégio branco. Quando encena os grandes fatos da época, especificamente o crescimento da KKK, Scorsese o faz de forma panorâmica e quase esquiva, para preservar a escala desse microcosmo em Oklahoma: a história do apagamento dos osages é também a história de homens pequenos e mesquinhos que conquistaram o Oeste à força.  

Na pior das hipóteses, por mais que tenha consciência do seu lugar, Assassinos da Lua das Flores não honra a memória dos osages. A ideia de estender o mecanismo dos assassinatos por três horas pode ser efetiva para expressar a ruína lenta de Ernest, mas Scorsese encena o vaivém dos malfeitores e seus tropeços com uma verve anedótica que esvazia a pretensa gravidade que ele procura nesse acúmulo. Talvez o filme de gangsterismo esteja para o diretor muito próximo da farsa ou da caricatura, e isso contamina Assassinos da Lua das Flores, quando a narrativa do luto na verdade pedia uma penitência mais próxima daquela de Silêncio (2016), que funciona melhor na chave três-horas-de-duração.

Entre uma hipótese e outra - que não são excludentes entre si - o que fica é a primazia da performance. Na prática, DiCaprio reivindica para si o protagonismo dessa história com base não nas virtudes de seu personagem e sim no virtuosismo da sua atuação. Aos osages resta sentir-se representados na dignidade de Lily Gladstone, uma atriz que tem a mesma qualidade anti-musa da jovem Meryl Streep e pelo menos desde Certas Mulheres (2016) consegue tirar o melhor do tempo de tela que lhe reservam. Ver Assassinos da Lua das Flores pela perspectiva da performance - o que inclui a presença de Scorsese em cena, e a ostensividade do texto digressivo e do seu trabalho de câmera cheio de zoom-ins - permite entender o filme simultaneamente como um projeto de memorialismo e de vaidade, duas outras coisas que também não se excluem entre si.

 
Nota do Crítico
Bom
Assassinos da Lua das Flores
Killers of the Flower Moon
Assassinos da Lua das Flores
Killers of the Flower Moon

Ano: 2023

País: EUA

Classificação: 14 anos

Duração: 206 min

Direção: Martin Scorsese

Roteiro: Eric Roth

Elenco: Robert De Niro, Lily Gladstone, Leonardo DiCaprio

Onde assistir:
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