A Profecia do Mal diverte com sua precariedade - até virar alegoria antiaborto
“Épico” religioso esbarra na subversão, mas escolhe (previsivelmente) o reacionismo
Créditos da imagem: Cena de A Profecia do Mal (Reprodução)
Há um breve momento, bem no miolo de A Profecia do Mal, em que o filme se torna surpreendentemente subversivo. Trata-se da cena em que a historiadora Laura (Alice Orr-Ewing), após ser sequestrada por um culto satanista e estuprada, foge de sua cela e tenta beber cloro para impedir que o feto concebido a partir do abuso, pretendido pelo culto como veículo para a reencarnação do diabo, venha ao mundo. Assombrada por uma voz maligna e com pouco controle sobre o próprio corpo, ela consegue ingerir o líquido mas, pega no ato pela chefe do culto (Eveline Hall), vomita profusamente em cima dela.
O roteiro do estreante Ed Alan esbarra aí em uma alegoria poderosa para a gestação indesejada, especialmente a advinda de estupro. Orr-Ewing, por todas as falhas do filme ao seu redor, encarna com garra a revolta e o asco que dominam Laura ao ter a sua autonomia violada; e o diretor Nathan Frankowski até faz paralelos interessantes com o horror corporal ao mostrar como a sua protagonista se move e se porta quando está possuída por esta vida incipiente diabólica, que modifica o seu corpo (ou “o aperfeiçoa”, como insistem os vilões do filme) e sua forma de interagir com o mundo, tornando-a progressivamente uma figura alienígena no ambiente hostil onde está inserida.
Acontece que A Profecia do Mal não é só um filme que usa o simbolismo e a mitologia cristã como artifício narrativo: ele é, de fato, um filme cristão. Vide o currículo do diretor Frankowski, encabeçado pelo documentário Expelled (2008), que argumenta que a comunidade científica, com sua pérfida obsessão por evidências, está em uma cruzada contra a inclusão do criacionismo no mundo acadêmico ocidental. Assim como Expelled se disfarçava de defesa inflamatória da liberdade científica para pontificar sua própria agenda, A Profecia do Mal se apossa dos clichês narrativos e referências visuais do épico de ação hollywoodiano, ou de uma subseção específica dele, para construir um discurso ainda mais reacionário.
Isso porque, é claro, o longa segura uma laboriosa reviravolta narrativa para o seu terceiro ato. Sem spoilers excessivos, basta dizer que A Profecia do Mal faz um tremendo esforço para converter a interrupção da gravidez forçada de Laura em algo ruim, não só para ela como para o destino do próprio universo. É neste momento que o filme perde de vista o pouco impulso narrativo genuíno que havia conseguido encontrar, e não à toa: nos dizer que a necessidade visceral que a protagonista sente de se livrar daquele feto indesejado é imoral e contraditória à vitória dos “mocinhos” da trama é equivalente a desfazer quase 1h30 de esforço para engajar o espectador na história dela e nas emoções mais autênticas da sua jornada.
É também neste terceiro ato que A Profecia do Mal joga fora toda a boa vontade adquirida pela sua elaboração surpreendentemente afiada de gênero. O filme, afinal, faz uso relativamente esperto dos seus efeitos especiais de baixo orçamento, e ainda evoca de forma barata, mas charmosa, blockbusters decadentes de inspiração religiosa como Fim dos Dias, Stigmata e (o vastamente superior) Constantine. Como tantos outros diretores e roteiristas antes deles, Frankowski e Alan se deslumbram com as possibilidades de construção de fantasia contidas nos motes bíblicos - e, também como tantos antes deles, sufocam essas possibilidades nas restrições de tempo, competência e orçamento de sua produção.
Daí a irrelevância absoluta das ações do “herói” da trama, um padre (Joe Doyle) possuído pelo espírito do arcanjo Miguel (Peter Mensah, destacado no pôster mas presente em menos de meia dúzia de cenas); ou o desenvolvimento improvisado de pelo menos uma mão cheia de subtramas pensadas para dar granularidade à mitologia, considerando também uma - se Deus tiver piedade de nós, inexistente - possível continuação. É compreensível, enfim, que espectadores seduzidos pela riquíssima simbologia cristã procurem histórias de gênero apoiadas nela, mas A Profecia do Mal esvazia essa promessa tanto com sua inaptitude narrativa quanto com o seu discurso teológico-político previsivelmente (e, logo, entediantemente) reacionário.