Longe das telas há 18 anos, desde quando adaptou a peça Navalha na Carne como um drama sobre solidão, o cineasta mineiro Neville D’Almeida precisou recorrer ao teatro de novo a fim de devolver ao cinema brasileiro a estética marginal de sexo sem pudor nem lágrimas pela qual ele foi imortalizado nos anos 1970 como campeão de bilheteria e transgressor. Sua volta se dá num diálogo com o também teatral A Frente Fria Que a Chuva Traz, texto do paranaense Mário Bortolottono qual a devassidão é visitada sob a observação de jovens de alta classe média afoitos por festas nas lajes de favelas. Foi com base nessa premissa, arquitetada por Bortolotto como um misto de bestiário de vícios desenfreados e ensaio sobre a invisibilidade dos excluídos, Neville constrói um tratado sobre a cafetinização da pobreza pelos mais abastados, apoiado em um elenco de estrelas, a começar por Bruna Linzmeyer numa síntese perfeita do desvario. Num olhar rápido, pode ser dizer que Neville fez uma micareta: a micareta da devassidão.
Como todo filme do diretor de A Dama do Lotação (1977), a sexualidade de A Frente Fria... é selvagem e implacável: não existem remorsos nem ressacas no universo de Neville. Ali, tudo é intestinal, anal, oral, on the rocks. Amores dão lugar a transas sem carinho, sem ligação no dia seguinte. E, neste caso, tudo dura o espaço de um dia, das 11h de uma ensolarada matina em uma favela do Rio até o fenecer da madrugada, com foco nos jovens que fazem uma rave no alto do morro, tendo como anfitriões Alisson (o sempre surpreendente Johnny Massaro) e Espeto (encarnado com todo o humor de Chay Sued). Suas amigas, amigos, um cantor de sertanejo universitário (Michel Melamed) e a garota de programa Amsterdã (papel de Bruna) vão se reunir às 22h para uma longa noite de loucuras, regada a drogas a granel e a selfies de postagem instantânea.
Visualmente, sob os auspícios do produtor Marcello Ludwig Maia (mesmo de Faroeste Caboclo), o novo filme de Neville desce aos Infernos com maior requinte de luz e de cor do que os longas anteriores do cineasta. É um Neville civilizado na forma, mas ainda brutal na abordagem as mesquinharias do mundo. A beleza vem da fotografia de Kika Cunha, de um colorido nas raias no cinema de Almodóvar, só que filtrado por uma busca de retratar o Rio, sequência a seqüência, num desapego para com a estética de “cartão postal” típica da Cidade Maravilhosa. No roteiro, a influência religiosa de toda a sua obra – de formação e prática protestante, ele tenta sempre buscar traços de Sodoma e Gomorra nos ritos contemporâneos de prazer descartável – ventila dor em sua Frente Fria na maneira como o cineasta deixa os horrores mais íntimos de seus personagens florescerem. Essa mediação é feita pela figura de Victor, o segurança vivido pelo próprio Mário Bortolotto, enfraquecido pelo álcool e pela solidão.
O que dilui o vigor do longa é a opção de o diretor se manter fiel ao texto original de Bortolotto inventando situações que só fazem repetir ações já realizadas. Reiterativo, o roteiro causa estafa ao longo da projeção, arejado mais pela entrada debochada de Raposão, o personagem de Melamed, e por todas as aparições da morena Natalia Lima Verde, a revelação do filme, na pele de uma patricinha com aspirações de ser DJ. O desabafo da figura vivida por Natalia rende gargalhadas nervosas de desespero frente à falta de propósito de uma geração rica e chapada, mas carente de sonhos.
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