Como gravidez e morte na família inspiraram Lisa Joy a criar Caminhos da Memória

Créditos da imagem: Lisa Joy (à dir.) dirige Rebecca Ferguson e Hugh Jackman em Caminhos da Memória (Reprodução)

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Como gravidez e morte na família inspiraram Lisa Joy a criar Caminhos da Memória

Ficção científica com Hugh Jackman é projeto pessoal para a diretora e roteirista de Westworld

24.08.2021, às 13H20.

A premissa de Caminhos da Memória ocorreu à diretora e roteirista Lisa Joy quando ela viajou ao norte da Inglaterra para ajudar sua avó logo após a morte do seu avô. Quando chegou à pequena comunidade onde os dois moraram juntos por 50 anos, a cineasta teve uma surpresa, conforme contou em entrevista ao Omelete.

A única coisa que sempre me chamou atenção na casa deles foi uma placa dourada que ficava na frente, uma coisa ornamentada, com um nome inscrito nela. Sempre que perguntei ao meu avô o que o nome significava, ele disse que simplesmente gostava da sonoridade. Quando eu fui ajudar a minha avó a guardar as coisas dele, no entanto, encontrei uma foto antiga, talvez de 50 anos atrás, mostrando uma linda mulher, e no verso estava escrito o mesmo nome da placa”, disse.

Sabendo que esse mistério nunca poderia ser respondido, Joy despejou sua energia no roteiro de Caminhos da Memória, em que Hugh Jackman é Nick Bannister, um veterano de guerra obcecado por encontrar - veja só! - uma mulher de seu passado: Mae (Rebecca Ferguson), cantora de boate que ele conheceu como cliente de sua “máquina de reminiscência”, uma tecnologia futurista do mundo do filme, que permite que indivíduos revisitem memórias, experimentando-as como se estivessem lá pela primeira vez.

Rebecca Ferguson em cena de Caminhos da Memória (Reprodução)

Todos nós às vezes viajamos no tempo com as nossas mentes. Voltamos para visitar um pai, uma mãe, um amigo, um amante… Para visitar momentos em que éramos pessoas diferentes das que somos hoje, em situações diferentes, quando nos sentíamos mais vivos, mais felizes”, comentou Joy. A relevância pessoal do tema se tornou ainda maior quando, no meio do processo de roteirização, a cineasta teve a sua primeira filha com Jonathan Nolan, seu marido e parceiro criativo em Westworld.

O primeiro filho é uma loucura, né? Você não dorme, e não tem ideia do que está fazendo, é muito estressante. Ao mesmo tempo, no meio da noite eu estava lá, privada de sono e carregando-a, e simplesmente cheirava a cabecinha dela, ou ela segurava o meu dedo com a sua mãozinha, e eu pensava: ‘Isso aqui é tão precioso’. Não há nada no mundo que eu não faria para ter mais momentos como este. Prêmios, realizações profissionais… nada se compara a esses momentos simples que todos temos em nossas vidas, e que fazem elas valerem a pena”, refletiu ela.

A capacidade humana de se lembrar do passado, no entanto, é limitada - e, conforme as memórias se esvaem e detalhes desbotam, é quase como se perdêssemos esses momentos pela segunda vez”, na definição de Joy. Mas o que aconteceria se essa “fraqueza” humana fosse suprida pela tecnologia?

De certa forma, isso se relaciona com Westworld, que também fala de memória”, comentou a diretora.Mas, em Westworld, os robôs têm a habilidade de se lembrar de tudo perfeitamente, o que mexe com o seu senso de tempo. Se você é capaz de se lembrar de tudo, em todos os detalhes, como você sabe que está aqui, e não lá, no passado? Como sabe o que é memória e o que é presente?”.

Caminhos da Memória é, essencialmente, a história de personagens - desta vez, para lá de humanos - que se perdem nessa distinção. É uma fábula agridoce e adulta, que não foge das complicações emocionais do seu tema, da moralidade incerta da sua proposta. Ou, como Joy definiu: “É um filme de ficção científica, com uma estética noir atualizada, mas o seu verdadeiro tema é a complexidade do coração humano, e da mente humana. É uma jornada interna, junto à jornada externa”.

Especulação virou realidade

Cena de Caminhos da Memória (Reprodução)

Outro lado do filme é seu retrato de um futuro marcado por injustiças sociais e pelas consequências do aquecimento global - e, se isso soa familiar, não é mera coincidência. No futuro imaginado por Joy, o nível do mar subiu por conta das mudanças climáticas e engoliu boa parte de cidades litorâneas como Miami e Nova Orleans, onde a história se passa.

Neste mundo, há uma sociedade muito dividida, na qual os ricos se isolaram atrás de muros, enquanto o restante das pessoas fica à mercê das marés”, contou a diretora. A ironia é que, pouco tempo atrás, o New York Times estava falando que o aquecimento global fez a cidade de Miami começar a construir muros enormes para tentar conter o avanço da água. O que começou como um trabalho de especulação, para mim, se tornou com o tempo uma realidade muito perturbadora”.

O filme pinta um quadro duro de marginalização, desigualdade e agitação civil, mas não vê a necessidade de transformar os seus personagens em retratos unidimensionais de sofrimento. Ao invés disso, Caminhos da Memória os enriquece ao injetar humor, romance e beleza plástica à sua distopia. “Eu não queria que a Miami ‘afundada’ fosse apenas um lugar distópico e deprimente, porque as pessoas, mesmo na pior das situações, constroem vidas significativas e bonitas para si”, disse Joy.

A ideia de colocar mensagens sociais em obras de ficção científica é importante para a diretora, que compara o trabalho aos mitos clássicos das culturas gregas, romanas ou chinesas. “Há algo de especial no quão amplos e alegóricos são esses mitos, porque isso permite que todo mundo os veja como um espelho de sua própria situação. É universal o bastante para se tornar uma forma de analisar a sua própria vida, o seu próprio mundo, através da metáfora. [...] Não acho que haja algo de incomum sobre os sentimentos que tenho, então para mim o gênero é a nova mitologia. Você pinta um mundo enorme, mas dentro dele inclui personagens muito humanos, que falam sobre quem somos e o que vivemos hoje”, definiu.

Foto das filmagens de Caminhos da Memória (Reprodução)

Parte dessa missão de refletir a realidade passa pela pandemia de covid-19, é claro - mesmo que Caminhos da Memória tenha finalizado filmagens antes do agravamento da crise sanitária, em março de 2020, Joy acredita que seu filme tem algo a dizer para um mundo que passou, e ainda passa, por um momento de isolamento e solidão.

Acho que a alienação que tanta gente sentiu [nesse período] reforçou, para mim, a importância da nostalgia e da memória”, comentou. “A pandemia me mostrou as necessidades humanas que todos temos. Minha sogra ficou completamente isolada por muitos meses, e, especialmente para uma pessoa mais velha, ficar sozinha dessa forma é muito complicado. Não poder estar ao lado dela quebrou o coração da nossa família. Na época, eu senti vontade de construir uma máquina de reminiscência verdadeira, para ela viajar em suas memórias, estar perto de nós novamente”.

No entanto, a realidade às vezes é ainda mais cruel do que a ficção, como Lisa Joy pode testemunhar: “Ao invés disso, eu dei um cachorro para ela. Foi o melhor que eu pude fazer”.

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