Borat | 15 anos da ácida e problemática obra maior de Sacha Baron Cohen

Créditos da imagem: 20th Century Fox/Divulgação

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Borat | 15 anos da ácida e problemática obra maior de Sacha Baron Cohen

Passagem dos anos acentuou sexismo e outros erros, mas acertos mantêm filme relevante

04.08.2021, às 12H00.

Quando Borat Sagdiyev, o segundo melhor repórter do gloriosos país Cazaquistão, mergulhou no american way of life pela primeira vez, foi para oferecer ao mundo um retrato nunca antes visto dos Estados Unidos da América. De bigode falso e maiô enfiado na bunda, o humorista britânico Sacha Baron-Cohen construiu um personagem tão inerentemente ofensivo que, envolto na fachada de um estrangeiro mal informado, se tornou o perfeito confidente para a paranoia, o preconceito e a mesquinharia que consumiam parte da população daquele que sempre se colocou como o país mais poderoso da Terra. Sucesso de crítica e público, mesmo que não pelos mesmos motivos, o filme venceu um Globo de Ouro e até foi indicado ao Oscar, deixando uma marca indelével na cultura pop.

Claro que, como prova a recente e igualmente celebrada sequência Borat: Fita de Cinema Seguinte (2020), um filme como Borat: O Segundo Melhor Repórter do Glorioso País Cazaquistão Viaja à América (2006) jamais seria feito hoje em dia. Para sustentar sua farsa e trazer um comentário social ácido às custas dos norte-americanos, Cohen cria uma narrativa que volta e meia ri também das vítimas da cultura de massa ocidental que ele mesmo critica, sejam elas os sofridos romenos do vilarejo de Glod (o Cazaquistão mostrado no filme), os descendentes de judeus perseguidos na II Guerra Mundial que encontraram refúgio nos EUA, ou basicamente todas as mulheres presentes na produção. O texto mais explicitamente consciente do segundo filme mostra como, nessa década e meia que se passou, o humorista evoluiu no entendimento que o humor, enquanto ferramenta satírica, é muito mais universal quando direcionado ao opressor, não ao oprimido.

Só que é nessa inconstante consciência social do Borat original que se esconde o que faz dele ainda mais interessante de ser revisitado hoje, tanto tempo depois do lançamento. Embaixo das insistentes piadas com incesto, para além do desconfortável segmento em que Cohen escandaliza representantes do movimento feminista e acima de toda a imbecil (e combinada) trama de sequestro de Pamela Anderson, o filme conseguiu expor de forma muito mais sutil como o preconceito, a intolerância e o ódio se escondem e ganham força sob camadas de civilidade com as quais trombamos diariamente. E de uma forma que a sequência, por mais que melhor pensada, executada e intencionada, não conseguiu repetir.

Em uma das passagens mais tragicômicas da produção de 2006, Borat visita uma concessionária e diz ao vendedor que quer "um carro que atraia uma mulher depilada", ao que o homem prontamente responde: "Isso seria um Hummer ou Corvette". Alguns minutos depois, o bigodudo indaga com qual velocidade poderia usar o veículo para matar atropelado "um grupo de ciganos""Com um carro desses, provavelmente 60km/h", responde o funcionário, sem titubear. Se em Fita de Cinema Seguinte Cohen denunciou absurdos da sociedade norte-americana mirando políticos ou pessoas tão peculiares que se aproximam elas mesmas da paródia, no original as principais vítimas das pegadinhas foram pessoas com as quais a maioria de nós poderia cruzar caminhos diariamente; homens que poderiam estar contigo em uma fila de supermercado, no transporte público ou só andando na rua. É, portanto, um retrato ainda mais agressivo das doenças de uma sociedade.

Isso porque, navegando no limiar entre o velho e o novo humor, o Borat original conversou diretamente com sua época. Passada a ascensão meteórica de popularidade de George W. Bush após o 11 de setembro, que garantiu sua reeleição em 2004, o presidente norte-americano amargava alguns dos piores índices de popularidade já registrados no país. Sua política externa de "Guerra ao Terror" era frequente alvo de denúncias contundentes de imperialismo e abusos socio-econômicos ao redor do mundo, bem como motivo de revolta para parte da população que via seus jovens morrendo em conflitos armados aparentemente arbitrários. Os EUA viam sua inabalável autoestima sendo minada, bem como sua sociedade iniciando um processo de ruptura identitária que até hoje só aumentou. Além de tudo isso, havia o medo do outro, do diferente, constantemente alimentado pela propaganda governamental pró-conflitos armados. Era tempo de mudança, e Cohen percebeu isso antes mesmo que Barack Obama formatasse seu slogan de campanha.

20th Century Fox

Borat uniu uma série de formatos já consagrados de se fazer rir (câmera escondida, mockumentary, comédia pastelão, comédia de personagem, etc...) para sustentar um argumento narrativo que visava uma coisa apenas: expor pessoas; suas diferenças, seus pensamentos, seus erros e acertos. E ele conseguiu. Talvez mais até do que qualquer documentário de Michael Moore, o filme desmistificou o fetiche pelos Estados Unidos alimentado por anos e anos de exportação cultural com filmes, séries de TV, livros e HQs formatadas segundo um ideal de país. De repente, a "terra dos livres" não era tão livre, nem o "lar dos bravos" guardava um povo tão corajoso assim. Foi um experimento usar a espiral de mudança de uma nação para mudar também a forma de se fazer humor de forma política. E, como todo experimento, houve erro, mas em nome de acertos que pavimentaram a evolução que hoje nos permite enxergá-los claramente.

Importante: exaltar a genialidade contida em Borat não se trata de ignorar ou passar pano para o sexismo, a homofobia, o antissemitismo, o incesto, a pedofilia e os demais temas reprováveis com os quais Cohen fez (ou tentou fazer) graça em algum momento, mas sim de entender como é valioso poder revisitar o filme também enquanto representação do avanço do nosso olhar crítico sobre essas questões. Ao mesmo tempo, como falei antes, há muito da sátira que continua tão atual e precisa que é impossível não concluir que essa evolução não aconteceu na mesma velocidade em todas as frentes da sociedade. Ou, talvez, ela viva ainda reclusa mais ao campo das ideias que da prática. É uma viagem reflexiva que mais uma vez depõe a favor dos acertos do filme, frente aos seus erros. E, com o trabalho eficiente de revisionismo feito em Fita de Cinema Seguinte (muito graças à incrível Maria Bakalova), dá para se aventurar nela sem tanto peso na consciência.

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