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A Questão Humana

Premiado drama francês associa a eugenia corporativa com as mazelas da Europa

Marcelo Hessel
19.06.2008, às 16H00
ATUALIZADA EM 11.11.2016, ÀS 07H06
ATUALIZADA EM 11.11.2016, ÀS 07H06

Duas tomadas nos dez primeiros minutos são suficientes para entendermos o que A Questão Humana quer nos dizer. Na primeira, dentro do banheiro de uma empresa, jovens com camisas claras, gravatas e ternos escuros se arrumam diante do espelho, um depois do outro, como numa organizada linha de produção. No plano seguinte, é a happy hour: os mesmos empregados se entregam à anarquia de movimento dos seus corpos em uma rave.

Para servir de ponte a esses dois momentos - a disciplina das aparências e seu oposto - o diretor francês Nicolas Klotz elege um personagem, um protagonista: Simon, o psicólogo da empresa, vivido por Mathieu Amalric (de Reis e Rainha, Munique e do próximo 007). É ele quem arranca as confidências dos empregados. Ou, mais apropriadamente, é ele que decide quem está mental e fisicamente apto a exercer as funções exigidas pela companhia.

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A própria cena que abre o filme, travelling de frente para um muro pintado com metragem, já sugere uma corrida por recordes, desempenho. Não é difícil prever que se desenha aí um viés de esquerda em A Questão Humana. Mesmo porque Simon nos diz logo de cara que trabalha na subsidiária francesa da petroquímica alemã SC Farb há sete anos e foi fundamental na reestruturação do pessoal, quando ajudou a cortar parte maciça do corpo de funcionários. É o cenário predileto para a esquerda fazer sua crítica ao capitalismo, especificamente a esquerda francesa, abraçada às suas conquistas trabalhistas.

Felizmente Klotz não se apega ao lado ideológico da coisa. Como o próprio título diz, é uma questão humana. Acompanhamos ao longo de 140 minutos como Simon, depois de repetir vezes e vezes o tecniquês empresarial, percebe a desumanização do processo seletivo que ele comanda - e desaba emocionalmente diante da máquina de moer carne do mundo produtivo.

O idioma dessa "geração técnica" (como um personagem chama os industriais), que adapta termos em alemão para a realidade francesa, é um elemento fundamental no filme. Como narrador, Mathieu Amalric já começa o filme escolhendo palavras com cuidado, arrastando a voz cerebralmente antes de pronunciá-las. Aos poucos - numa suave e difícil mudança de entonação - percebemos como o personagem fica angustiado por essa tucanização (eu não pretendia meter política brasileira no meio, mas "tucanar" é um verbo mais que exato) da língua. Ao fim do filme a narração e a crítica ao vocabulário tecnicamente correto será crucial.

Aliás, pode parecer um simples caso de sinônimos, mas há, de acordo com um importante personagem, uma diferença entre "questão" e "problema". A Europa tem questões de ordem social, sempre teve, mas seus governantes e suas lideranças insistem em tratar essas questões como problemas. Deixa-se de discuti-las, passa-se a solucioná-las. E sabemos do que a Europa é capaz quando se convence de que precisa solucionar um problema.

O verbo é, enfim, não só um instrumento de opressão e dominação - e é assim desde o início dos tempos - mas também a ferramenta do concílio. Ou melhor, ferramenta da terapia, já que estamos tratando de um protagonista psicólogo. A Questão Humana lida de forma muito bonita com a questão da palavra, seja ela cantada em espanhol ou em português, seja ela usada numa prosa franco-germânica em off, e casa bem com as imagens cuidadosamente filmadas por Klotz. E casa também com as não-filmadas, já que o uso do extracampo (a ação que ocorre fora do enquadramento) é constante.

Nesse drama de incontornável peso político, que levou o prêmio da crítica na Mostra de Cinema de São Paulo no ano passado, o cineasta às vezes sucumbe ao apelo da generalização (a batida da polícia contra os negros, mensagem descontextualizada, é mais uma provocação do que uma articulação de idéia), mas no fim dá o seu recado humanista com brilhantismo.

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