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Documentário brasileiro leva desrespeito a indígenas ao Festival de Berlim

Em entrevista ao Omelete, Luiz Bolognesi fala sobre A Última Floresta, único longa brasileiro selecionado para o evento, que retrata luta de ianomâmis contra o garimpo

02.03.2021, às 13H30.
Atualizada em 02.03.2021, ÀS 17H59

Luiz Bolognesi é um apaixonado pela questão indígena no Brasil e um estudioso dos mitos criados e alimentados por diversos povos. Roteirista consagrado de filmes como Bicho de 7 Cabeças (2000), Elis (2016) e Como Nossos Pais (2017), ele passou para atrás das câmeras e dirigiu filmes consagrados em festivais internacionais. Seu longa Uma História de Amor e Fúria venceu o Festival de Annecy, o mais importante do mundo entre as animações; e Ex-Pajé, seu primeiro documentário sobre indígenas, foi selecionado para o Festival de Berlim de 2018.

Em 2021, num ano fraco de filmes brasileiros no festival alemão, que faz uma edição online entre os dias 1 e 5 de março, Luiz viu seu novo filme, A Última Floresta, como o único longa brasileiro selecionado no evento – na prestigiada seção Panorama. Produção da Gullane e da Buriti Filmes, o filme entrelaça a luta do líder ianomâmi Davi Kopenawa para defender seu povo da invasão dos garimpeiros com uma encenação dos grandes mitos ianomâmis pelos próprios índios. Durante pouco mais de uma hora, o diretor nos mergulha na natureza da floresta amazônica e nos faz viver o tempo e o ritmo dos ianomâmis, totalmente distante do nosso mundo ansioso dos celulares e redes sociais.

Na entrevista a seguir, Bolognesi fala do descaso do governo Bolsonaro com a invasão do garimpo em terras indígenas, a pandemia de Covid entre os ianomâmis e a ameaça de desmonte do cinema brasileiro com o fim dos incentivos federais.

Você tem um interesse de longa data pelos indígenas no seu trabalho – os roteiros de Terra Vermelha e Amazônia, a direção de Lutas, Uma História de Amor e Fúria, Ex-Pajé. Por onde começou tamanho interesse?

Foi ainda na juventude. Fiz cinco anos de antropologia na USP, e lá estudei mitologia indígena, em obras como a do Claude Lévi-Strauss. Depois, com 22 anos, fui professor numa comunidade de índios pataxós em Caraíva (BA). E fiquei encantado por eles. São pessoas com outro tempo, que lidam com conflitos e acidentes com uma serenidade que me espantava. Entre os pataxós, naquela época, havia miséria, mas não mortes e assassinatos. 

Quando escrevi o roteiro do filme Terra Vermelha (2008), conheci uma realidade mais barra-pesada: os suicídios dos índios no Mato Grosso do Sul, a destruição das terras, a chegada violenta da soja e das igrejas evangélicas. Sofri muito, meu estômago revirou, fiquei doente. Mas percebi que queria contar essas histórias. Quando escrevo de encomenda para outros projetos, os temas variam. Mas quando são meus projetos pessoais, sempre acabo voltando à questão indígena.

Você termina o filme com um texto que lembra que, desde a chegada de Bolsonaro ao poder, 20 mil garimpeiros voltaram a invadir as terras ianomâmi – e o governo não dá o mínimo sinal de reforçar a fiscalização e fazer cumprir a lei. Como estão os ianomâmis hoje?

É preciso deixar claro que esses números que colocamos nos letreiros finais são um fato concreto, e não uma crítica que faço a um determinado governo. A reserva ianomâmi é uma terra oficialmente homologada, determinada por decreto presidencial, aprovada no Congresso. A terra é legalmente deles e, segundo a Constituição, nenhum branco pode entrar lá sem a autorização deles. E, no entanto, há ao menos 15 mil garimpeiros ali. Eles já fizeram até reunião com o vice-presidente (Hamilton Mourão). Imagina se 15 mil sem-terra invadirem as fazendas do Mato Grosso do Sul. As Forças Armadas não agiriam imediatamente para cumprir a lei? Por que, neste caso, a lei não se cumpre?

Os garimpeiros estão trabalhando com mercúrio, contaminando pequenos igarapés, matando os peixes. Isso gera uma crise hídrica que afeta o Brasil inteiro, com falta de água no sul do país e nas plantações de soja. Como diz o Davi: “estamos lutando para o bem do Brasil inteiro, não apenas do nosso povo”.

Como está a situação da Covid entre os povos ianomâmis? E a perseguição ao Davi Kopenawa?

Houve também alguns casos de Covid, com algumas mortes entre os mais velhos e as crianças. Mas a vacina já chegou lá em muitas partes – os índios mais velhos já tomaram até a segunda dose. Além disso, há um trabalho xamânico muito forte nessas aldeias para minimizar o efeito dessas doenças.

O Davi sofre constantes ameaças de morte em Boa Vista [capital de Roraima]. Nós sabemos que, no Brasil, país de Chico Mendes e Marielle Franco, essas ameaças podem ser cumpridas. Muitos amigos querem que o Davi saia do país para se proteger. A boa notícia é que ainda não existe garimpo intensivo num raio de 100 km de onde ele e seu povo moram; eles atuam mais ao norte. Na região dele, existem vanguardas de garimpeiros, que vão em pequenos grupos armados fazer prospecção. Davi e seus guerreiros se pintam de preto e vão pra cima, dizem que esses garimpeiros precisam ir embora. Eles não chegam mais matando, hoje sabem que não podem fazer isso. Mas não fogem ao conflito para defender suas terras.

São mais de 80 aldeias ianomâmis nesse território – algumas com índios já muito doentes por causa do mercúrio na água. Mas o Davi não quis filmar nessas aldeias, dizia: “não quero fazer um filme de coitados. Não quero que meu povo seja visto como vítima. Os fracos e doentes são vocês, os brancos, que não ouvem mais os seus espíritos e destroem tudo o que existe”.

Onde fica exatamente esse grupo ianomâmi que você mostra em A Última Floresta? E como foram os primeiros contatos com o Davi e com o grupo, para que vocês brancos pudessem filmar lá?

A reserva fica na divisa entre Roraima e Amazonas. Não dá pra chegar de carro ou barco, é uma região montanhosa. Quando se chega lá, é para ficar pelo menos um mês. Era tudo muito delicado, um pisar em ovos constante – e esses ovos de repente podem ser uma sucuri, uma cobra coral, uma aranha (risos). Também não sabemos quando estamos ofendendo, ou quando devemos impor algum limite.

Apenas quatro ou cinco ianomâmis, entre eles o Davi [Kopenawa, líder ianomâmi, protoganista e corroteirista do filme] falam português. Eles ainda vivem de uma maneira muito tradicional, caçam com arco e flecha. O Davi não deixa chegar Bolsa Família ou armas de fogo porque quer manter sua cultura viva. Toda base xamânica e mitológica segue intacta: as curas, rituais, interdições, tabus. O Davi pedia para não darmos a eles biscoitos, comida com sal ou açúcar, porque isso estraga o hábito alimentar deles.

E como era a relação com as mulheres do grupo? Uma delas, Ehuana, encena dentro do filme o mito de Thueyoma, uma mulher-peixe.

Quando eu e Davi escrevemos o roteiro a quatro mãos, ele sempre consultava os homens mais velhos da tribo. Um dia, pedi para falar com as mulheres também. Ele respondeu: “aqui as mulheres não decidem essas coisas, não participam dessas reuniões”. Aquilo me incomodou. Ao mesmo tempo, a Ehuana me procurava para contar suas histórias pessoais. Ela é uma feminista indígena – sim, existe esse movimento em vários povos, com líderes como a Sônia Guajajara. Surgiu de jovens mulheres que se rebelam contra o comportamento dos homens, e são massacradas por isso. Mas existem muitas antropólogas e ambientalistas que dão força e ecoam a voz delas.

Atualmente, a Ehuana está numa potência de viver sem marido, que em geral é o responsável pela caça. Ela abriu uma ONG só de mulheres para vender cestos artesanais – e sofreu muita resistência dos homens no início. Foi quando argumentei com Davi: “eu preciso ouvir as mulheres da tribo, porque o mundo está mudando. Se neste filme a gente ouvir só os homens, não vai ser bom para o povo ianomâmi”. E ele acabou se abrindo para isso.

O líder indígena e filósofo Ailton Krenak analisa a importância e o lugar do mito para o índio pensar e interagir com o mundo. Ele diz, entre outras coisas, que no tempo do mito ainda não se tinha a angústia da certeza – o mito é uma possibilidade, não uma garantia. Em que ponto as ideias do Krenak confluem com seus documentários?

Ailton é meu amigo e um grande mestre, um dos maiores pensadores do século 21. Ele reúne o pensamento de 4 mil anos dos povos pré-cabralinos e traduz de um jeito que o homem branco pode entender e admirar a complexidade. O Davi Kopenawa também faz isso muito bem no seu livro A Queda do Céu, para mim o Grande Sertão: Veredas do século 21.

Ele traduz o olhar desses povos sempre muito abertos ao devir. Eles nunca planejam o que vai acontecer, porque isso gera ansiedade, stress, frustração. “Vamos viver o aqui e agora; eu só vou saber o que fazer à tarde quando a tarde chegar.” Muitas vezes eles me falavam: “Luiz, eu só vou filmar à tarde se estiver me sentindo bem; se não estiver, vou fazer outra coisa”. Isso gera níveis de stress baixíssimos, e níveis de concentração com o aqui e agora muito profundos. Eles podem ficar parados numa trilha, esperando uma capivara que será o jantar deles, durante três ou quatro horas, sem um celular na mão para ver Facebook ou Whatsapp. Conseguem se encantar com o tempo presente, têm a sabedoria de que o tempo não lhes pertence. Nós, os brancos e civilizados, estamos sempre angustiados – e quando pensamos que o tempo nos pertence, o transformamos em tédio.

Uma das lendas mostradas no filme diz que Yoasi, um dos irmãos originais da tribo ianomâmi, criou a morte, mas seu irmão Omama a enterrou debaixo dos minérios da terra. E cada vez que o homem branco revira a terra atrás dos minérios, ele está liberando a morte. Como essa lenda ressoa hoje, em tempos de Covid?

O Davi declarou: “se o homem branco continuar revirando os minérios embaixo da terra, ele vai liberar a fumaça da morte. E essa fumaça da doença vai se espalhar”. Um ano depois, veio a pandemia da Covid, porque o homem entrou na floresta na China e foi mexer onde não devia.

O que nós definimos em fórmulas científicas, eles definem pelas narrativas dos mitos. Os mitos nos guiam moralmente, indicam o que devemos ou não fazer. Para eles, o mito não é algo que fica guardado numa caixinha, como para nós é o caso do saci ou do curupira. É o lugar do dia a dia. Para os ianomâmis, o universo do sonho não é separado da realidade, mas tem o mesmo peso dela. O momento do sono pode ser muito difícil, fazendo com que eles acordem exaustos com o que sonharam. Um dia, um guerreiro me disse ainda de manhã: “Estou exausto. Acabei de acordar, mas passei a noite inteira fugindo de uma onça”. Para ele, esse acontecimento era real.

Eu embarco totalmente na narrativa autêntica que os ianomâmis me contam. Convidamos alguns deles para atuar, e daí saiu este documentário meio real meio fantástico, que respeita o ponto de vista deles.

Você é um dos únicos representantes brasileiros em Berlim este ano, depois de um 2020 em que tivemos 19 filmes na seleção. Como você vê o momento atual do cinema brasileiro? Existe um risco real de paralisia das produções?

É um cenário triste. Começamos a ver sintomas de uma política de genocídio da cultura. A Ancine [Agência Nacional do Cinema, ligada ao governo federal] vem travando deliberadamente as produções, numa ação de um governo que odeia a cultura. Do outro lado, também tivemos uma pandemia que paralisou a produção – não foi o caso do meu filme porque ele já estava filmado, em fase de finalização. Esse resultado brasileiro no Festival de Berlim entristeceu a todos nós. Mas o cinema brasileiro é feito por gente muito forte. Já vencemos outras crises. Também vamos vencer esta e renascer das cinzas.

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