Alice Braga,
latina convicta

Atriz conta ao Omelete porque não “foge” dos rótulos - aqui e em Hollywood

Caio Coletti | @caiocoletti Reportagem

Em 20 anos de fama, Alice Braga só ouviu um rumor sobre si mesma que a deixou realmente irritada. “Quando dizem que fui embora do Brasil, fico muito brava. Sou muito daqui e falo muito daqui. Sempre que posso, volto. Isso é uma coisa que me magoa e que não é verdade, essa coisa de ‘você nem mora no Brasil, foi pros EUA, é muito fácil falar de longe’. Muito pelo contrário! Minha família toda é daqui, e eu sou daqui também”, comenta ela em conversa com o Omelete.

Definindo-se como “discípula de São Paulo e da Vila Madalena”, Alice diz que o Brasil tem “tudo de melhor que um país pode ter, menos a [atual] presidência”, se referindo à gestão Jair Bolsonaro (PL). A atriz cita o descaso com a questão ambiental e o desmonte das políticas públicas de cultura ao criticar o governo, e completa: “Acho que a gente tem cada vez mais que falar sobre nossa história. Trabalhando fora, as pessoas ficam achando que eu fui embora, que não faço mais nada no Brasil. E na verdade eu tenho cada vez mais vontade de produzir e participar de projetos que celebrem o que a gente tem de bom”.

Alice posiciona Eduardo e Mônica, filme adaptado da canção de mesmo nome da Legião Urbana, como parte dessa missão. Gravada em 2018, a produção dirigida por René Sampaio (Faroeste Caboclo) passou por vários adiamentos e deve chegar aos cinemas, finalmente, no próximo dia 20 de janeiro. Assim como a música, o longa acompanha o romance entre o jovem Eduardo (Gabriel Leone) e uma mulher mais velha, Mônica (Braga), enquanto os dois tentam equalizar suas diferenças e veem o afeto um pelo outro crescer.

[O filme] mostra que a gente não pode ter medo do diferente, e que o conflito não quer dizer o fim. A gente tem que achar o diálogo”, reflete Alice, que criou uma Mônica politizada em homenagem ao próprio Renato Russo. “Falamos muito sobre isso de uma forma delicada, que eu espero que as pessoas se conectem. [...] O legal de lançar [Eduardo e Mônica] agora é que ele é um projeto que fala um pouco da gente, da nossa história, e também do amor, que é o que a gente mais precisa”.

“Quero abraçar e representar o que sou”

“Nossa, cheguei nessa idade já?”, brinca Alice ao ouvir que nossa conversa tentaria fazer uma retrospectiva de sua carreira. A atriz - de apenas 38 anos, diga-se de passagem - fala de cinema e TV (enfim, de contar histórias) com empolgação palpável, mas também pensando com cuidado nas palavras, mantendo o contato visual e exibindo frequentemente um riso fácil e sincero. Quando o assunto é a série A Rainha do Sul, por exemplo, ela reflete sobre como tentou subverter os estereótipos da história latina ligada ao narcotráfico.

“A gente cria a verdade da personagem a partir da realidade que ela vem, então nunca tirei isso da cabeça, sempre ficava trazendo os motivos”, comenta. Na trama, a Teresa Mendoza interpretada por Alice se torna chefe de cartel após o seu noivo, que trabalhava para o narcotráfico, ser morto pelo superior. As cinco temporadas da série, das quais quatro estão disponíveis no Brasil pela Netflix, traçam como a engenhosa personagem vai ganhando poder e perdendo escrúpulos conforme sobe na hierarquia da organização criminosa.

“Por que a Teresa entrou nesse universo? Por que ela viveu o que viveu? Por que ela seguiu esse caminho, e por que não se importava em fazer as pessoas gostarem dela?”, questiona Alice. “Ela não é uma pessoa boa, necessariamente, mas acho que ninguém é bom ou mau, sabe? Todo mundo tem dois lados. Busquei humanizar a Teresa pela realidade, trazer a discussão, para a gente não ser sempre o latino vilão [em Hollywood]. Muitos jornalistas perguntam se eu fujo desse rótulo de latina a eu digo o contrário, eu acho que aí que tem o nosso axé, a nossa força. Ser latino significa ter representatividade e, quanto mais eu puder, mais eu quero abraçar e representar o que eu sou”.

O processo de evitar essa vilanização passou também por trás das câmeras, com Alice se envolvendo em A Rainha do Sul como produtora executiva a partir da 4ª temporada. Ela conta que deu pitacos no roteiro da série desde o início, o que fez com que parecesse “orgânico” o convite para a produção. “A minha personagem era uma mulher latina. Na primeira temporada, eram só dois homens brancos escrevendo - o que não tem problema, mas precisava de uma voz ali”, explica. “Acho que produzir coisas para eu fazer é muito legal, porque eu posso botar a voz nas personagens, mas eu também tenho vontade de produzir outras coisas, mesmo que não eu não atue”.

Exemplo desse gosto pela produção é a primeira temporada de Sintonia, da Netflix, parceria com KondZilla que aborda o universo do funk paulistano. “Foi um projeto que, quando eu conheci pela primeira vez, eu pirei. Falei com todo mundo, dizia: ‘Cara, a gente tem que contar essa história, porque é nossa história’. Eu acho que [a série] tem essa potência, da gente contar para a gente mesmo e também de mostrar [para o mundo] o que a gente sabe”, comenta.

Uma questão de alma

Além das investidas na produção, uma experiência recente que abriu portas diferentes para Alice foi a participação em Soul, animação da Pixar lançada pelo Disney+ no final de 2020. No filme, ela deu a voz a Jerry, uma das entidades sem gênero ou presença corpórea que cuida do além-vida imaginado pelo diretor e roteirista Pete Docter. Após se declarar fã do estúdio, e definir o projeto como “um sonho realizado” no Instagram, ela nos explica o que tornou a experiência especial.

“O que mais fiquei feliz foi ser um filme que fala sobre almas, de onde a gente vem, vidas, emoções, escolhas. Achei tão legal eles [na Pixar] terem essa decisão de ‘não vamos fazer um filme em que todo mundo tem sotaque inglês, a gente quer sons diferentes para as pessoas reconhecerem’”, diz. “Teve gente do mundo inteiro, e acho que isso é muito valioso, porque é voltado para a representatividade. Para mim, ainda teve o desafio como atriz de você fazer uma coisa que não é seu corpo, só sua voz, e ter que achar o tom”.

O futuro guarda ao menos mais dois projetos de dublagem. O primeiro será no Brasil, uma adaptação de A Arca de Noé, de Vinícius de Moraes, dirigida por Sérgio Machado (Cidade Baixa) e co-estrelada por Rodrigo Santoro e Marcelo Adnet - na produção, Alice dá voz a uma rata que está entre os animais abrigados na arca durante o dilúvio. Sobre o segundo, produzido nos EUA, a atriz ainda faz mistério, mas revela que se trata de uma série de TV infantil.

Já em live-action, os fãs podem esperar em breve o lançamento de Ivy, ficção científica que será lançada pela Netflix e traz Alice no papel de uma mulher que, se recuperando de um acidente, se muda para uma casa tecnológica e descobre que a inteligência artificial instalada nela está desenvolvendo emoções humanas; e de Hypnotic, um “thriller psicológico à la Hitchcock” (nas palavras da atriz) dirigido por Robert Rodriguez (Alita: Anjo de Combate). Ambos devem sair em 2022.

Também sobrou tempo, nos últimos meses, para ela embarcar em um projeto experimental, o filme Share, de Ira Rosenweig: “É uma coisa super independente. Ele me apresentou esse roteiro bem doido e muito legal. Eu estava saindo de A Rainha do Sul e foi muito divertido, porque foi quase teatral. A gente filmou por três semanas com três câmeras, uma do lado da outra, atuando e ao mesmo tempo se vendo através do teleprompter

Super-heróis e sabres de luz

Apesar do gosto por todo tipo de história, Alice não esconde o seu lado nerd, e o carinho por histórias de gênero (terror, ficção científica, fantasia) que definiu grande parte de sua carreira em Hollywood. De Eu Sou a Lenda a Elysium e Ensaio Sobre a Cegueira, ela reflete que muitos dos futuros distópicos que encenou em tela se tornaram assustadoramente próximos da realidade.

Eu sempre achei que as pessoas gostavam de ver esses filmes porque era como entrar numa história que é totalmente diferente da nossa realidade, [mas] quando fiz Eu Sou a Lenda nunca imaginei que um vírus altamente contagioso poderia transformar o mundo, como aconteceu”, diz. “E a desigualdade social em Elysium, os ricos irem para um refúgio e deixarem a miséria para trás, é muito perto do que a gente vive. Basta olhar a África sem vacina. Mas sempre gostei de ficção científica, desde pequena, dessa coisa de pensar o mundo por uma outra ótica, outra realidade. Como atriz, foi o lugar que abriu as portas pra mim, e eu quis cada vez mais entrar”.

Filmes de super-heróis também entram nessa brincadeira, e Alice rasga elogios para a experiência no set de O Esquadrão Suicida, de James Gunn. “Quem conhece sabe que ele subverte tudo de uma forma delicada e maravilhosa. É um diretor muito criativo, então estar ali vendo ele dar vida a esses personagens que todo mundo já conhecia das HQs de uma forma irreverente, sem medo de ser louco, engraçado e desvirtuar tudo, foi incrível. Achei uma experiência muito potente, e tem mais é que fazer isso mesmo, é tão bom! A gente que gosta embarca na viagem e vive aquilo”, conta.

A preparação para um blockbuster como Esquadrão e um drama independente não é tão diferente. Alice diz que tem um profissional de confiança que a ajuda a destrinchar todos os roteiros antes das filmagens, e que a chave é se conectar com o diretor e entender o que ele busca para a personagem. “Você tem que dosar sua quantidade de energia. Não a entrega [ao papel], mas o tom que você vai adotar na performance. [...] Você também vê o que os outros atores estão fazendo e vai meio por ali. Por isso mesmo que fazer um filme de ação é muito divertido, ele te leva para um lugar diferente de energia, muito visceral”, define.

Embora mais papéis de super-heroínas não estejam fora de questão (“Já me disseram que eu podia fazer a Hera Venenosa…”), a maior vontade de Alice é entrar para outra grande franquia: Star Wars. Inclusive, durante o trabalho recente com Robert Rodriguez, ela viu algumas artes e objetos do set de O Livro de Boba Fett antes do lançamento: “Ele ficou me mostrando fotos, e eu surtando. Uma vez estávamos na casa dele, e tinha um sabre de luz lá. Pedi para tocar, fiquei encantada”.

E em uma filmografia que já inclui projetos com nomes de Fernando Meirelles a Neill Blomkamp, de Walter Salles a David Mamet, com quem ainda falta trabalhar? “É tipo escolher um filho…”, brinca Alice quando confrontada com a pergunta. “No Brasil, o Karim Aïnouz [de A Vida Invisível e A Praia do Futuro], que sou muito fã, acho um grande inventor, um grande ser humano, admiro demais. E gringo, o Alfonso Cuarón [de Gravidade e Roma], que amo e tem uma potência criativa brilhante”.

“A juventude tem muito para nos ensinar”

Em meio a essas vontades, uma experiência bem diferente que Alice vivenciou recentemente foi no set de We Are Who We Are, minissérie da HBO co-criada e dirigida por Luca Guadagnino (Me Chame Pelo Seu Nome). Ambientada em uma base militar americana na Itália, a produção explora um grupo de adolescentes que está descobrindo sua identidade de gênero e sua sexualidade. A atriz brasileira interpreta Maggie, esposa da coronel Sarah Wilson (Chloë Sevigny) e madrasta do protagonista Fraser (Jack Dylan Grazer), uma personagem inicialmente misteriosa, que vai revelando o seu lado mais ousado com o passar dos capítulos.

Para Alice, a chave foi trazer para a tela uma experiência LGBTQIA+ diferente daquela vivenciada pelos protagonistas mais jovens. “Fiquei muito feliz de fazer essa série, porque é uma personagem que se diferencia daquela geração mais nova. Ela viveu muita repressão, então eu e a Chloe Seigny tentamos muito refazer um pouco dessa luta, retratar o quanto elas tiveram que se reprimir”, explica.

Ainda assim, a narrativa é centrada na perspectiva jovem, e parece que o set também foi dominado pelo elenco adolescente. Em uma das cenas mais marcantes e ternas da série, Maggie ensina o enteado, Fraser, a se barbear - a energia nervosa de Dylan Grazer em cena, uma constante nos oito capítulos de We Are Who We Are, cria um dueto sensível e delicioso com a performance contida, mas calorosa, de Alice.

“O Luca gosta muito de tirar os atores da zona de conforto, e eu amei isso, porque a gente está acostumado a todo mundo se preparar, chegar, fazer e ir embora. Ele nos desafia, nos deixa improvisar”, conta ela. “A cena sempre está lá [no roteiro], mas quando você está trabalhando com um jovem de 16 anos totalmente à vontade ali, e o Jack é um gênio, ele responde da forma que vai responder”.

A abordagem deu vida a uma história mais autêntica, bem ao gosto da estrela brasileira. “Se a gente está falando de juventude, tem que dar liberdade pra eles contarem a história deles. E essa juventude tem tanto pra nos ensinar sobre gênero, liberdade, descoberta, aceitação. Sobre o diferente”, comenta.

Tanto a série quanto as palavras que a atriz busca para defini-la parecem evocar uma alteridade generosa, rara e necessária que, de Hollywood a Eduardo e Mônica, parece ser a marca da artista Alice Braga.

Publicado 17 de Janeiro de 2022
Edição Beatriz Amendola | @bia_amendola
Edição e coordenação Jorge Corrêa | @_jorgecorrea
Capa e tratamento de imagem Kaique Vieira | @kaicovieira