Dizem que as condições climáticas no Brasil nesta época tendem a induzir cadelas ao cio, o que justificaria o tal "mês do cachorro louco", epíteto infame que associa agosto ao desgosto e ao mau agouro. Questões de folhinha à parte, o cinema nem sempre trata os cães como os melhores amigos do homem, e dentro dos filmes de horror com animais tem todo um subgênero dedicado aos cachorros com raiva, possuídos e treinados para a violência.
Na seleção desta semana, as Dicas do Hessel pinçam sete sugestões nos streamings que giram em torno do tema - alguns deles são pensados, inclusive, para chamar atenção para o combate ao descaso e aos maus-tratos com animais - ou exploram os mistérios antropomórficos dos laços estreitos entre os cães e os humanos.
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Cão Branco
O último trabalho americano do cineasta Samuel Fuller, de 1982, é um dos maiores filmes já feitos sobre racismo. O roteiro escrito por Fuller com Curtis Hanson adapta um romance sobre um treinador negro de cães que se dedica a curar um pastor branco que havia sido domesticado por um racista a avançar raivosamente sobre afroamericanos. A trama se presta, metaforicamente, a analisar se o preconceito racial é uma mazela incurável, e Fuller coloca seu estilo sempre vigoroso a serviço de um suspense absolutamente tensionado (Cão Branco tem algumas das câmeras lentas mais angustiantes já filmadas).
Disponível no Amazon Prime Video.
Alvo Triplo
Adrien Brody, John Malkovich e Rory Culkin fazem três assaltantes que, durante uma fuga, escondidos num galpão abandonado, precisam sobreviver a um pitbull de rinhas. O filme perde força quando insiste no estudo de personagens (depois do terceiro ou quarto solilóquio as metáforas com o mundo canino já começam a se repetir), mas a variedade de situações de ação numa única locação é bastante criativa. O diretor Paul Solet dedica o filme à sua falecida cadela Molly, e nos créditos finais também aparece a mensagem de que parte da renda do filme seria revertida para o combate às rinhas.
Disponível na Netflix.
Diamantino
Cachorros inimigos podem ser também produto de mentes iluminadas. Mais precisamente, "cachorros felpudos" (ler com sotaque açoriano), que o craque da bola Diamantino imagina sempre no lugar dos rivais quando está encantando o planeta com seus dribles. A comédia portuguesa obviamente parodia a imagem de Cristiano Ronaldo, embora não o cite nominalmente, para falar da alienação europeia com as urgentes questões imigratórias dos refugiados no continente. O ator Carloto Cotta faz um sósia perfeito de Ronaldo, com sua cara de quem vive alegremente numa realidade paralela, feita das regras que o próprio Diamantino define.
Disponível no Telecine.
Deus Branco
O filme do húngaro Kornél Mundruczó remete ao de Fuller no seu título - e a premissa também é aproximada, pois também trata de animais condicionados ao ódio contra as pessoas - mas é muito mais gráfico nas cenas violentas. A experiência de assisti-lo pode ser bem desagradável, independente da sensibilidade do espectador, e Mundruczó usa esse acúmulo de ofensas para construir um crescendo que resulta num clímax de impacto. Todo o lance de Deus Branco é existir em função desse clímax, em que os cães se rebelam contra todo tipo de abandono e agressão. No Festival de Cannes, anualmente, é dado um troféu para os melhores cachorros do cinema, e em 2014 o prêmio merecidamente foi para o elenco canino supertreinado deste filme.
Disponível no Globoplay.
Cujo
De Conta Comigo a Cemitério Maldito, os filmes inspirados na obra de Stephen King frequentemente recorrem a animais como símbolos de incerteza e perigo, e a peça central nessa colcha animal - inclusive pelo seu tamanho mais que avantajado - é o são bernardo que protagoniza Cujo. O diretor Lewis Teague não tem pudor na hora de filmar o terror, e as cenas em que Cujo cerca o veículo de mãe e filho estão entre os momentos mais apavorantes da vasta galeria de pesadelos escritos por King e impressos em película. O que mais enerva em Cujo, porém, é a forma como se discute família nuclear e adultério, e como diminui-se a autonomia feminina nas dinâmicas de casal. King voltaria a situações parecidas depois em outro romance, Gerald's Game (que depois virou o ótimo filme Jogo Perigoso, disponível na Netflix), o que meio que "corrige" Cujo de um ponto de vista feminista.
Disponível na Netflix.
Um Lobisomem Americano em Londres
Um dos melhores filmes de lobisomem da história é também uma grande declaração de amor ao cinema de gênero em geral e ao horror em particular - não só pelas piadas de metalinguagem com os filmes de monstros dos anos 1930 mas também por abraçar o cinema como epicentro cultural de mudanças de comportamento ao longo do século 20. O supervisor de efeitos Rick Baker ficou famoso pela maquiagem da transformação do lobisomem, vencedora do Oscar, que oferece uma tradução visual arrebatadora da experiência que é chegar à puberdade e - cercado de sexo na TV e no cinema - ceder aos instintos mais animalescos do desejo.
Disponível no Amazon Prime Video.
Dogman
Desde que realizou Gomorra, o diretor italiano Matteo Garrone ganha mais moral do Festival de Cannes do que de fato merece. Não é diferente com Dogman, mais uma história de crime e paúra em Nápoles, mas desta vez o mundo cão é quase literal: o protagonista, dono de um pet shop, se vê refém de uma relação abusiva com o brutamontes do bairro, praticamente seu "dono". Garrone pesa a mão como sempre, mas o microuniverso do conjunto habitacional tem seu interesse, pelo menos plástico, quase de fábula. É um filme, ademais, que poupa os cachorros da miséria (com exceção de uma cena engraçada envolvendo um congelador) e serve bem para fechar esta lista: quando os homens sentem na pele também os abusos pelos quais passam os animais.
Disponível na Netflix.