Cena de Coringa: Delírio a Dois (Reprodução)

Créditos da imagem: Cena de Coringa: Delírio a Dois (Reprodução)

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Se Coringa 2 é um musical, é mais um musical com vergonha de sê-lo

Sequência da Warner segue tendência aborrecida de esconder a cantoria

Omelete
5 min de leitura
10.04.2024, às 11H52.

Nos últimos quatro meses, três filmes musicais bancados por grandes estúdios de Hollywood chegaram aos cinemas: Wonka, A Cor Púrpura e Meninas Malvadas. É uma concentração bem incomum para o cinemão estadunidense contemporâneo, que por décadas (pelo menos desde o fim da era de ouro do gênero, lá no final dos anos 1950) só deixou um filme musical por ano escapar da prisão onde os executivos dos estúdios mantém escondidos os seus melhores compositores - quando muito. Mas, se você não foi ao cinema assistir a nenhum dos três filmes citados acima, talvez nem soubesse de sua musicalidade.

Há uma comunalidade bizarra que surge quando se assiste aos trailers desses três filmes e, logo depois, ao recém-lançado trailer de Coringa: Delírio a Dois - quase nada nessas prévias de filmes musicais deixa muito claro que eles são, bom, filmes musicais. No caso do trailer do filme de Todd Phillips, de forma muito parecida com o que aconteceu com os três outros citados acima, chegamos a ver os personagens dançando ou se apresentando em palcos iluminados por holofotes… mas nenhum deles, sob possibilidade nenhuma, canta.

É verdade que ninguém ainda viu Delírio a Dois, mas sua inserção no gênero não só tem sido conversada desde o anúncio de Lady Gaga no elenco, como foi confirmada após as filmagens por veículos como a Variety, que contou que o longa terá nada menos do que 15 canções, entre covers de clássicos e composições originais. De fato, seguindo a deixa de seus predecessores, a prévia de Delírio a Dois coloca cenas não-musicais de Joaquin Phoenix e Gaga por cima de uma trilha sonora perfeitamente inócua: um cover de “What the World Needs Now is Love”, clássico de 1965 da dupla de compositores Hal David e Burt Bacharach, tornada famosa pela cantora Jackie DeShannon.

Tendo em vista que o trailer de Meninas Malvadas era embalado por “Get Him Back”, hit de Olivia Rodrigo totalmente ausente do longa, nada garante que a canção tocada no trailer de Coringa será de fato cantada pelos personagens . De qualquer forma, é uma escolha quase incompreensível: se você tem Lady Gaga, provavelmente a melhor vocalista pop deste século, em seu elenco - e ela canta em seu filme! -, porque diabos não capitalizar nisso para o primeiro trailer? Nasce Uma Estrela certamente o fez , e não por acaso se tornou uma sensação cultural praticamente instantânea quando revelou sua prévia.

Acontece que Nasce Uma Estrela é o que se costuma chamar de musical diegético, o que significa que todos os seus números (e, sim, eles continuam sendo números) são justificados dentro da trama. Ally (Gaga) e Jackson (Bradley Cooper) são músicos, e portanto apresentam suas canções em turnês, programas de TV, na intimidade de sua própria casa ou sentados ao piano. Embora as canções sejam tão essenciais para o desenrolar da trama quanto em Moulin Rouge!, por exemplo, tudo está dentro do contexto do realismo. Em nenhum momento os personagens param de falar para começar a cantar. Eles cantam quando a situação permite.

E muita gente declara odiar musicais não-diegéticos justamente por isso. O incômodo surge pela suposta quebra da imersão que acontece quando o filme introduz o elemento naturalmente fantasioso de uma cena que não explica por que os personagens estão entoando tudo em melodia, ao invés de apenas conversarem, ou por que todo mundo na rua ao redor do protagonista sabe os passos de dança certos para acompanhá-lo. É esse tipo de coisa que os estúdios têm tentado esconder o máximo possível do público, embora continuem produzindo filmes que contém esses elementos.

O motivo, óbvio, é marketing. O chefe de distribuição da Paramount, Marc Weinstock, disse isso com todas as letras quando perguntado sobre o trailer de Meninas Malvadas: Não queríamos chegar dizendo ‘isso aqui é um musical!’, porque as pessoas tendem a tratar musicais de forma diferente. Este filme é uma comédia com música. Pode ser considerado um musical, sim, mas apela para um público maior”. É uma versão menos disfarçada do papinho furado do diretor e roteirista Todd Phillips na CinemaCon, onde disse nunca ter pensado em Coringa: Delírio a Dois como um musical, exatamente, embora a música seja um elemento essencial”.

A ginástica retórica deve ter sido adotada levando em conta também que Delírio a Dois é a continuação de um filme que se tornou absurdamente bem-sucedido, ao menos em parte, por apelar a um público masculinizado (mais do que só masculino) que foi treinado a rejeitar como besteira (até porque é feminino) o que quer que escape do “sombrio e realista”. Mas também há de se lembrar que Hollywood, e especialmente essa Hollywood contemporânea dominada por executivos de marketing que acreditam ser capazes de vender qualquer coisa à revelia da arte envolvida em seu filão, é especialista em tirar a lição errada de seus êxitos e fracassos.

Wonka não fez mais de US$ 600 milhões nas bilheterias por que ninguém sabia que o filme era um musical… ele fez mais de US$ 600 milhões porque é um musical brilhante, que banca - não, dobra! - suas apostas na fantasia, na cor, no idealismo, no encanto absolutamente irreal do cinema (e ser estrelado por Timothée Chalamet ajuda). Mas tente dizer isso para algum executivo da Warner, e você provavelmente será recebido com a versão mais entediante de uma canção de vilão convencido da Disney, onde o antagonista em questão está totalmente inconsciente do quão absolutamente ridículo ele parece a quem o assiste.

Enfim, Coringa: Delírio a Dois provavelmente será um grande sucesso comercial, e ainda é cedo demais para dizer o quanto o filme em si se apoia  no gênero musical. Mas o que não falta na história do cinema são exemplos de longas que se provam bem diferentes daqueles que os estúdios tentam vender antes de seu lançamento, e o fato é que a continuação começou mal ao se atrelar a uma das tendências mais estúpidas, e mais representativas da covardia geral que domina Hollywood, a ter surgido nos últimos anos.

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