Cultura Pop no Brasil | Queimando pneus do Paraná para as telas de todos o país
Automobilismo, Chico Buarque, O Último Cine Drive-In e mais na nova coluna de Rodrigo Fonseca
A julgar por clássicos como Grand Prix (1966), de John Frankenheimer, ou mesmo uma traquinagem pop como Roberto Carlos a 300 Km por Hora(1970), de Roberto Farias, os filmes de corrida tendem a liberar uma descarga de adrenalina na tela capaz de eternizar sequências de ação esportiva. Mas há algo mais do que cheiro de pneu queimado (e testosterona a mil) num exemplar brasileiro do filão automobilístico hoje em fase de finalização em Londrina, no Paraná. Previsto para correr pelas pistas dos festivais a partir de 2016, Leste Oeste, primeiro longa do premiado curta-metragista Rodrigo Grota, quer mais do que apresentar tomadas de velocidade aptas a arrancar o fôlego da plateia: ele busca os dilemas existenciais por baixo dos capacetes e dos macacões dos pilotos. O protagonista, Ezequiel, é vivido por Felipe Kannenberg, e, entre as muitas curvas perigosas em seu destino, aquela que o aproxima de Stela (Simone Iliescu) pode ser a mais letal.
“Apesar de o protagonista do filme Leste Oeste ser um piloto de corridas, um homem que constantemente se põe em perigo, suspeito que o filme não seja exatamente sobre a sensação extrema de velocidade física, e sim sobre uma possível imobilidade existencial, uma contínua incapacidade do ser humano de conseguir se ausentar de si mesmo, de fugir plenamente do seu universo afetivo”, diz Rodrigo Grota, aclamado em festivais brasileiros pelos curtas da Trilogia do Esquecimento, formada por Satori Uso (2007), Booker Pitman (2008) e Haruo Ohara (2010). “Por mais que você tente escapar, fugir ou esquecer alguns aspectos da sua trajetória, as questões essenciais permanecem - o que eu quero, o que eu sou, eu quero mudar, o que devo fazer para mudar...”.
Com trilha sonora assinada por Rodrigo Guedes, líder do Grenade (uma das principais bandas do indie rock brasileiro), Leste Oeste foi filmado em meio a provas reais: as 100 Milhas de Kart e as 500 Milhas de Londrina. Na trama, o ex-piloto Ezequiel decide retornar a sua cidade natal, depois de um sumiço de 15 anos, para realizar uma última corrida. Lá, ele reencontra Stela, ex-mulher de seu irmão, Pedro, um jovem aspirante a piloto, e Angelo, o patriarca da família.
“Eu acredito que o nosso instinto nunca nos abandona - a dúvida primordial resiste. Nesse sentido, Leste Oeste dialoga mais com filmes como Corrida sem Fim, do Monte Hellman, e The Brown Bunny, do Vincent Gallo. A estrada, as ruas, as pistas - todo movimento nesses filmes é sempre um mergulho interior, atribuindo um certo existencialismo aos seus heróis. E esse anseio é sempre algo fascinante”, explica Grota, famoso pelo rigor visual de suas narrativas, requintadas na fotografia e na edição.
Produzido pela Kinopus, via a dupla Guilherme Peraro e Roberta Takamatsu e fotografado por Guilherme Gerais, Leste Oeste procurou ir além da cartilha dos canais de esporte para filmar automobilismo.
“Hoje temos equipamentos de última geração que registram provas e uma variedade imensa de ângulos que nos são apresentados por câmeras posicionadas dentro dos carros. A nossa busca não era se aproximar desse tipo de registro. Não nos interessava a multiplicidade de ângulos, e sim, a intensidade de cada plano, aquilo que ele talvez não apresente de forma direta”, diz Grota. “A nossa estratégia foi muito mais próxima de uma abordagem documental - os carros realmente disputavam uma prova. Os pilotos realmente estavam treinando. Contamos inclusive com um piloto em um dos papéis centrais - o jovem Bruno Silva, de 16 anos - ele nunca tinha atuado e corre de Kart desde os 4 anos. Quando o seu personagem se machuca, ele se machuca de verdade. Quando ele chora, é uma derrota para si mesmo no mundo real, e não apenas no universo criado pelo filme. Queríamos nos aproximar desse ambiente sempre com um olhar de curiosidade, respeito, um olhar inocente mesmo. A nossa ideia não era conduzir, e sim se deixar levar”.
Um desafio ainda maior para o cineasta é o de mostrar que existe um cinema em ebulição hoje no Paraná, que ensaiou um boom audiovisual em 2007 com a aparição de Estômago mas não cumpriu sua promessa de explodir no circuito.
“O imaginário brasileiro sobre o Paraná praticamente não existe - quando você fala do nosso Estado surgem imagens como as Cataratas de Foz do Iguaçu, alguns parques em Curitiba, e possivelmente a ideia de que Londrina foi por alguns anos considerada ‘a capital mundial do café’", diz Grota. “O próprio imaginário que o paranaense nutre pelo seu estado também é algo não muito concreto. O Paraná, além de ser um Estado muito novo, foi sempre um estado ‘de passagem’, um trecho da rota dos tropeiros do Sul que rumavam para o Sudeste. Tudo isso contribui para que a cultura paranaense ainda não seja algo tão visível, cristalino, e espontaneamente assimilada até mesmo entre nós. Mas essa ausência de identidade, aos meus olhos, não é algo negativo. Pelo contrário - é um estímulo. Pois não temos uma tradição contra a qual lutar. Se nada é unicamente ‘paranaense’, tudo pode ser relativo ao nosso Estado. E é nessa liberdade que nos apoiamos”.
MOMENTO CRÍTICO
O Último Cine Drive-In
Dá para contar nos dedos da mão esquerda os grandes filmes brasileiros de 2015. Neste ano de raros momentos de excelência (Campo de Jogo, Até que a Sbórnia nos separe, Permanência) ou de transcendência (Casa Grande, Real Beleza) na produção nacional, o circuito exibidor recebe uma pepita dourada garimpada no coração de Brasília e esmerilhada na competição de longas-metragens do recém-encerrado 43º Festival de Gramado: a dramédia O Último Cine Drive-In. Dirigida por Iberê Carvalho, no trânsito entre o humor, o pranto e (em poucos, mas nobres momentos) a câmera documental, a produção ganhou o prêmio da crítica em Gramado e levou ainda os Kikitos de direção de arte, ator (Breno Nina) e atriz coadjuvante (Fernanda Rocha). Por que ver? Ora, porque se trata de um singular exercício de equilibro entre autoralidade e expressão popular capaz de evocar a tradição de comédias e dramas rurais - das fitas de Mazzaropi ao musical Na Estrada da Vida (1983), de Nelson Pereira dos Santos - ao mesmo tempo em que afirma uma gramática narrativa personalíssima. Não basta para convencer? Ok, num elenco exemplar, liderado pela entidade Othon Bastos, o longa dá de brinde ao espectador a revelação de um jovem e talentoso ator maranhense capaz de encarnar em olhares e gestos toda a fragilidade do macho brasileiro contemporâneo.
Breno Nina desenha uma curva trágica contundente no papel de Marlombrando, jovem operário que, diante da doença terminal de sua mãe, Fátima (Rita Assemany) sai em busca do pai, Almeida (Othon), a fim de fazer com que este dê à sua ex-mulher um momento de prazer lúdico. O que seria? Fazer com que o velho drive-in da família, o último em atividade no país, volte a ter uma noite de gala. Nessa trama simples, Iberê presta tributo ao imaginário cinéfilo do país ao mesmo tempo em que nos relembra a capacidade de um bom roteiro brasileiro de trazer personagens tridimensionais, que não se esgotam em tiradas divertidas. É o caso de toda a fauna de tipos ao redor de Marlombrando, em especial a misteriosa Paula, morena cujo jeitão masculinizado é relativizado por um barrigão de uma gravidez misteriosa. Na delicada composição de Fernanda, Paula vira um ser indefinível, mas indispensável, como tudo neste filme, que se funda como um dos melhores longas brasileiros da safra recente.
À espera de Chico Buarque
Realizador de Vinícius, o maior sucesso documental de bilheteria do Brasil nos últimos 20 anos, o diretor Miguel Faria Jr. lança até dezembro um filme sobre Chico Buarque. O longa traz 11 números musicais interpretados por ídolos da MPB como Milton Nascimento e Ney Matogrosso, além de trazer uma participação da fadista portuguesa Carminho e um duo com Adriana Calcanhoto e Mart’Nália. Com distribuição assegurada pela Sony, o documentário, outrora batizado de Chico: o Artista e o Tempo, agora mudou de nome para Chico, Artista Brasileiro.
Falando de música... Legrand vem aí
Responsável pela trilha sonora de clássicos do cinema como Houve uma Vez um Verão (1971) e Crown, o Magnífico (1968), o maestro francês Michel Legrand virá ao Brasil em setembro, para dois dias de recital na Cidade das Artes, na Barra da Tijuca (RJ). Ele se apresenta em duo com a cantora de ópera Natalie Dessay, nos dias 18 e 19 do mês que vem, revivendo as músicas de filmes premiados como Os Guarda-Chuvas do Amor (1964) e Yentl(1983).
Senna na telinha
Promessa de saudade anunciada ao reviver a lenda de um mito da Fórmula 1, a série documental Ayrton – Retratos e Memórias, do jornalistaErnesto Rodrigues, estreia dia 12 de setembro, às 23h30m, no Canal Brasil. Em dez episódios de 25 minutos, o programa vai refazer as pistas pelas quais Ayrton Senna virou um ídolo mundial da velocidade. A emissora promete um chat ao vivo de Ernesto com os espectadores.
E assim se passaram 20 anos
Lançado em 1995, O Menino Maluquinho, do mineiro Helvécio Ratton, baseado nas HQs e livros infanto-juvenis de Ziraldo, vai celebrar seu 20º aniversário com sessão de gala na 13ª edição do Festival Internacional de Cinema Infantil (FICI). Ao todo o evento vai exibir 100 filmes de 4 a 13 de setembro no Rio e em Niterói, seguindo na seqüência para Salvador, Aracaju e Natal. A seleção inclui a animação inédita Nautilus, de Rodrigo Gava.
Pérola francesa em DVD
Força-motriz da renovação de linguagem do cinema francês entre os anos 1950 e 60, Jean-Pierre Melville (1917-1973) terá sua obra-prima, o thriller bélico O Exército das Sombras (L’Armée des Ombres, 1969), lançada (enfim) em DVD no Brasil, pela Versátil, em setembro. O filme reúne Lino Venturae Simone Signoret num ambiente de tensão a cada segunda numa trama sobre os bastidores da Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial. Ainda em setembro, a Versátil garimpa pra nós outra pepita: uma série de longas de um mestre do audiovisual soviético, o russo Andrei Tarkóvski (1932-1986). No box de DVDs do gênio da Rússia serão lançados clássicos como Nostalgia (1983) e O Espelho (1975).
Tonacci com mais e melhor de si
Cult incontestável do cinema de contracultura no Brasil graças ao longa-metragem Bang bang (1971), o diretor Andrea Tonacci estará de volta ás telas brasileiras depois de um hiato de quase sete anos com Já Visto Jamais Visto. A produção estreia dia 17 de setembro em São Paulo, no Circuito SP de Cultura, com apoio da SP Cine. O filme reúne imagens de diferentes momentos da vida e da obra do cineasta, emaranhadas a partir de uma releitura poética de suas saudades e de suas reflexões estéticas.
Solanas.Doc
Ícone do documentário latino-americano desde o lançamento de La Hora de Los Hornos, em 1968, o cineasta e senador argentino Fernando Pino Solanas será o objeto de um documentário produzido pelo diretor carioca Luiz Carlos Lacerda e fotografado por Alison Prodlik. A produção começou a ser realizada na Serra Gaúcha, por conta da homenagem a Solanas no 43º Festival de Gramado, onde este recebeu o Kikito de Cristal pelo conjunto de sua carreira, iniciada em 1962.
Nas cordas de Yamandu
Depois de arrebatar o cinema com uma interpretação personalíssima de A Deus da Minha Rua em Lisbela e o Prisioneiro (2003), o músico gaúchoYamandu Costa, tido hoje como um dos maiores violonistas do Brasil, faz show nesta quarta-feira, no Rio, em Copacabana, às 21h, no Theatro Net. Seu violão faz duo com as cordas de Guto Wirtti. O encontro deles é um dos eventos mais esperados da música em solo carioca.
CURTA ESSA:
O Corpo: Aula de terror em forma de curta-metragem, este thriller sobrenatural gaúcho produzido por Alice Castiel e dirigido por Lucas Cassales venceu o 43º Festival de Gramado, no dia 15 de agosto, pela potência visual (e põe potência nisso!) de sua narrativa. Na trama, um rapaz encontra o corpo de uma menina desacordado na mata. Seus pais (vividos por César Troncoso e pela titã Janaína Kremer, a melhor atriz do Rio Grande do Sul na atualidade) se apoderam da jovem, mas não exatamente por razões altruístas. Ecos de Lars von Trier e seu Anticristo (2009) alimentam o filme, cuja fotografia (assinada por Arno Schuh) ganhou um merecido Kikito. Trata-se de um trabalho 100% brasileiro e cem por cento talhado para a exportação.
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*Com DNA luso-pop-suburbano carioca, Rodrigo Fonseca é crítico de cinema, roteirista e professor de história das narrativas audiovisuais, com dupla cidadania na Terra-Média de Tolkien, e nos rincões da Atlântida de Aquaman. Michel Gondry é o seu Godard e a pornochanchada, a sua alegria nas horas de solidão.