Viva a música sem limites com Deezer!

Icone Conheça Chippu
Icone Fechar
Colunistas
Artigo

Affonso Solano | A equivocada maldição do licantropo bonitão

"Monstros e fantasmas são reais. Eles vivem dentro de nós, e às vezes vencem." - Stephen King

AS
17.02.2015, às 17H54.

David sentiu o corpo queimar. Não a pele ou o peito como em uma febre repentina, mas o corpo inteiro, incapaz de conter a erupção maldita que lhe corrompia as veias. Ele largou o livro e se ergueu da poltrona do apartamento londrino, gritando ao rasgar das próprias roupas.

None

Omelete Recomenda

No velho radio sobre a cômoda, Bobby Vinton cantarolava "Blue Moon" com sua voz nostálgica.

Nu, o americano encarou com horror a mão direita - carne e ossos se deformavam a procura da anatomia nefasta que lhe aguardava, estalando e rasgando nervos de forma incompreensível. A dor se tornara algo além do que a mente de David era capaz de registrar, redefinindo sua concepção da palavra. Ele implorou por ajuda, caindo de joelhos e ouvindo o farfalhar dos novos pelos. Ao som de galhos partidos, a coluna se partiu e se refez, forçando-o a se prostrar de quatro sobre o tapete. David tentou gemer, mas o que lhe escapou da garganta foi inumano.

E faminto.

...

Responsável pela criação da categoria do Oscar de melhores efeitos de maquiagem, o filme "Um Lobisomem Americano em Londres" representa, na humilde opinião do mortal que vos escreve, a essência do mito da licantropia. A criatura, entretanto, caminhou uma estrada sinuosa desde as origens do folclore europeu, por vezes se perdendo nos caminhos criativos da indústria do entretenimento. A maldição, eventualmente confundida com "superpoder", deu lugar a homens-lobo de corpos schwarzenéticos e poses heroicas, desperdiçando os alicerces que sustentam o monstro original.

E não estou necessariamente olhando para o pobre Jacob - este muito mais próximo dos skin-walkers nativo-americanos ou mesmo do loup garou.

O tema me veio à mente recentemente após assistir o longa metragem "Wer". Apesar de me decepcionar enquanto filme, o retrato cru que a obra faz do lobisomem em si trouxe alegria ao fã do gênero horror/terror que sou. Desde a refilmagem "O Lobisomem", de 2010, que não via o mito tão bem preservado em um filme de grande circuito, estando geralmente resumido a películas de orçamento mais humilde (ou de décadas atrás, como "Bad Moon", "Grito de Horror" ou mesmo "Deu a Louca nos Monstros").

O filme "Van Helsing", por exemplo, apesar de se manter fiel ao princípio da lenda, nos apresenta lobisomens oriundos de uma academia de musculação carioca. Deveria haver uma diferença substancial entre força e aparência, principalmente quando aplicados no desenhar de um animal antropomórfico - tórax e abdomens definidos sugerem a perfeição escultural justamente contrária ao que o monstro deveria possuir, principalmente ao se considerar que, para os gregos antigos, a beleza física era tida como sinônimo de integridade moral.

Dentro do raciocínio, a vítima da maldição também deveria ser retratada como o oposto das beldades adolescentes de "Hemlock Grove", com suas peles perfeitas e cabelos hidratados (não que seja preciso se ater a qualquer estereótipo; o conto "A Hora do Lobisomem", de Stephen King, escapa dessa armadilha de maneira muito original para a época).

Não sou "contra" adaptações, é claro, ou mesmo releituras de grandes ícones do fantástico. Muito menos tenho a pretensão de defecar regras nesse texto que divido com vocês; sou apenas um defensor da estrutura (ainda que isso não me impeça de gostar de obras que distorçam a mesma). Anne Rice, do excelente "Entrevista com o Vampiro", fez alterações significativas na mitologia então estabelecida dos bebedores de sangue, porém preservando o cerne da mesma (ainda são monstros, contudo usam de beleza para atrair a presa). Já a série "Underworld" acerta no design e posicionamento de pária dos lobisomens, porém peca ao conceder a habilidade de "transformação livre" aos Lycans, conferindo um arquétipo superheróico que enfraquece (ironicamente) um personagem outrora trágico: o lobisomem não deveria ser dono do próprio destino, mas um escravo da lua, sujeito às leis injustas da maldição que o acometeu.

O equívoco, a meu ver, é resumir os fundamentos básicos do folclore original ao simples "pessoa que se transforma em animal"; animal este que deve constantemente buscar o transcender da palavra, ultrapassando a forma do lobo simplório para algo disforme e abominável. O horror - como fundamentado pelos mestres do gênero - nunca deve ser completamente compreendido ou controlado. A fantasia é, acima de tudo, metáfora para nossos desejos ou medos reais, aqui aplicados sobre a desconfortável conjectura de que talvez ainda sejamos os animais de ontem.

E pensar sobre o que podemos fazer caso o "lobo" venha à tona nos faz sentir frágeis - algo que o lobisomem, em sua verdadeira essência, é.


 

Affonso Solano é cocriador do Matando Robôs Gigantes, escritor do livro O Espadachim de Carvão e tem um canal no YouTube chamado Hora Super

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a nossa Política de Privacidade bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.