Cena de Batman e cena de Coringa, contrapostas

Créditos da imagem: Warner Bros./Divulgação

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Batman é, em essência, o mesmo filme que Coringa. Só que muito melhor!

Filme do Cavaleiro das Trevas entende seu personagem-título como o do palhaço não conseguiu

Omelete
12 min de leitura
18.03.2022, às 18H04.
Atualizada em 18.03.2022, ÀS 21H13

Da revolta com uma sociedade decadente e desigual ao terceiro ato apoteótico, onde cidadãos desequilibrados tocam em armas para promover o que pensam ser um “justiçamento” necessário, Batman (2022) e Coringa (2019) guardam semelhanças que espelham a dualidade que, há anos, é central às suas histórias nos quadrinhos da DC.

No trato dessas e outras similaridades, onde o filme de Matt Reeves difere do de Todd Phillips é no foco em uma mensagem concreta. Batman bebe de referências e constrói situações similares às vistas na derrocada à loucura de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), o alter-ego civil do personagem-título de Coringa. Entretanto, todas elas são instrumentalizadas de formas diferentes, convergindo a favor de um reforço ao mito do Homem-Morcego (Robert Pattinson), onde o heroísmo do personagem está na crença da reabilitação de Gotham acima de seu desejo pessoal de justiça e vingança. Seja pela falta de experiência de Phillips na condução de tramas mais densas, ou por falta de conhecimento dos quadrinhos por parte dele e do co-roteirista Scott Silver, o filme do Príncipe Palhaço do Crime não consegue fazer algo similar pelo personagem.

Ao invés de desconstruir por um prisma mais realista a maldade caótica e intrínseca ao vilão, ele apela ao melodrama de uma doença não especificada, ao cinismo de uma Gotham deliberadamente construída para justificar a jornada dele, e ao clichê batido das cenas de dança epifânicas para propor uma humanização disruptiva de um outrora imperdoável psicopata. Nesse processo, entretanto, Coringa consegue realizar só parcialmente o que tenciona, já que acaba por privar um complexo personagem de maiores nuances e profundidade; restringindo todo o leque de incertezas que o fez uma figura tão marcante a uma maniqueísta relação de causa e efeito que o descaracteriza profundamente.

TAXI DRIVER EM GOTHAM CITY

Cena de Taxi Driver
Warner Bros./Reprodução

Vítima de grande trauma, um homem decide preparar seu corpo e mente para levar justiça a um mundo doente. Reduzidos a esse breve conceito, Travis Bickle (Robert De Niro), Arthur Fleck e Bruce Wayne são essencialmente o mesmo personagem. Tanto Coringa quanto Batman se inspiram a fundo na jornada do protagonista de Taxi Driver (1976) para construir dois retratos sobre homens levados ao limite pelas condições que os cercam. Mas se a inspiração do filme de Phillips é muito mais explícita (contando até com uma participação do próprio De Niro), é Reeves o cineasta que melhor honra as intenções do diretor Martin Scorsese e do roteirista Paul Schrader, no clássico setentista.

Mesmo que seja o objeto de análise de Taxi Driver, Bickle nunca é acariciado pela câmera de Scorsese. A forma como o experiente cineasta o enquadra é incômoda, invasiva e pessoal, mas nunca condescendente. Quando o taxista cede aos seus impulsos sociopatas e se torna um sanguinário anti-herói, sabemos que o que o motiva não é nobre, afinal o vimos agredir gratuitamente uma mulher que não o correspondeu emocionalmente, planejar o assassinato gratuito de um inocente e tentar manipular uma criança para saciar uma fantasia de heroísmo que massagearia seu ego ferido. Isso faz dele uma figura complexa, capaz de despertar empatia, mas, acima de tudo, reflexão. Fleck é a antítese disso.

O personagem de Joaquin Phoenix é insistentemente colocado na posição de vítima, muitas vezes em situações que parecem gratuitas e soam artificiais, construídas apenas para despertar simpatia imediata pelo personagem. Maltratado no serviço, espancado nas ruas, usado como bode expiatório por alguém que pensa ser um amigo, ridicularizado por pessoas mais ricas que ele, agredido na infância pela mãe que ele agora protege, renegado por quem pensa ser seu pai e, por fim, humilhado na TV. Sempre que protagoniza algo hediondo, esse Coringa o faz contra pessoas que de alguma forma o feriram e maltrataram. Há sempre, portanto, uma justificativa lógica; uma forma de diminuir a monstruosidade por vezes aleatória do vilão que ele se tornará. É um desenvolvimento de personagem preguiçoso e paternalista; nada parecido com o de Bickle.

Já o Bruce Wayne de Batman, assumidamente um herói ao final do filme, apresenta comportamentos questionáveis e reprováveis o tempo todo. Como diretor e co-roteirista, Matt Reeves não tem medo de fazer de um dos personagens mais populares dos quadrinhos um misantropo que trata mal a sua única figura paterna, chega perto de agredir uma parceira de investigação por sentir ciúmes dela, espanca criminosos a esmo e por prazer e leva perto de 3h de trama para entender que precisa mirar naqueles iguais a ele — os ricos, poderosos e privilegiados — se quiser fazer com que as ruas de Gotham abriguem menos perigos. Do monólogo de abertura do filme, onde Wayne ecoa Bickle e sua vontade de “limpar as ruas da escória”, até o de encerramento, onde ele se posiciona como “esperança” para as pessoas da cidade, o personagem atravessa uma jornada moral de nuances muito mais ricas e desafiadoras que Fleck, em Coringa. E olha que estamos comparando um herói e um vilão.

PROTAGONISTA NO DIVÃ

Robert Pattinson em cena de Batman
Warner Bros./Reprodução

O supracitado é um dos motivos pelos quais Batman supera Coringa também enquanto estudo de personagem, mas não o único. Nesse quesito, o principal diferencial entre os trabalhos de Reeves e Phillips é a variedade de desafios posicionados para os personagens. Narrativamente, o conflito é sempre a raiz da evolução de uma narrativa, e Phillips é preguiçoso ao constantemente apoiar desafios supostamente chocantes e reveladores de sua história na incerteza. Será Arthur Fleck um irmão perdido de Bruce Wayne? Sim, a não ser que a mãe perturbada do garoto estivesse mentindo o tempo todo. Será ele o responsável pela criação do Batman? Sim, mas não exatamente, já que ele nem estava no lugar na hora do crime. Pode toda a trama do filme ser fruto da mente doente de um homem internado? Sim, mas só se a sequência que inevitavelmente virá decidir assim.

Logo, qual é o verdadeiro impacto do discurso anti-sistema que Fleck entoa enraivecido na TV, instigando em Gotham um rompante anárquico potencializado pelo assassinato (muitos dirão, justificável) de três burocratas assediadores? O de reafirmação. Coringa não quer desafiar seu protagonista, mas abraçá-lo. Assim, apresenta-se como arte desprovida de conflito, que não convida o espectador a tomar parte em uma discussão, mas sim advoga sem espaço para questionamentos a favor da causa em que acredita. Não é à toa que Phillips coloca na boca de seu protagonista ecos da discussão sobre limites do humor que ele, um artista de postura liberalista que flerta com o conservadorismo, volta e meia traz à tona (“A comédia é subjetiva, Murray. Não é isso o que dizem? Todos vocês… O sistema que sabe tanto… Vocês decidem o que é certo e o que é errado? Da mesma forma que decidem o que é engraçado e o que não é”): o diretor e co-roteirista se enxerga nesse personagem, aproveitando a história desenvolvida para justificar a si mesmo de maneira cínica.

Reeves também usa de si para construir o seu Batman, mas o faz de uma perspectiva crítica: o que de pior Bruce Wayne carrega, ecoa de forma mais aguda o potencial inerentemente humano ao egoísmo, ao individualismo e à misantropia. Ativamente exposto e confrontado do início ao fim do filme pela sua própria incapacidade de impactar positivamente a cidade de Gotham, o personagem é obrigado a encarar a personificação de suas falhas por meio do Charada (Paul Dano). Guardando ainda mais paralelos com Arthur Fleck, esta versão de Edward Nashton também sofre de problemas psicológicos, também foi marginalizada e esquecida pela sociedade e também se vê como alguma forma de vingador justiceiro. O filme que a abriga, entretanto, não confunde o posicionamento moral que o personagem assume ao decidir matar pessoas inocentes para provar o seu ponto com qualquer coisa próxima ao justificável; por mais compreensível, complexa e humana que seja a jornada que formou o vilão, ela nunca é romantizada, como é o caso em Coringa.

CRÍTICA SOCIAL F*DA

Cena de Coringa
Warner Bros./Divulgação

O trato raso de Coringa no desenvolvimento de seu personagem-título seria menos prejudicial à qualidade geral do filme se o mesmo não decidisse, em seu ato final, abraçar um escopo tão grandioso quanto pretensioso. Ao usar a derrocada psicológica de Fleck como alavanca para um levante popular das classes trabalhadoras contra a elite aparentemente corrupta de Gotham, Phillips contamina com a bagunça moral de seu personagem uma discussão essencial para o mundo real.

Associando essa revolta justificável a um vilão homicida, o filme de 2019 sintetiza sua mensagem de duas formas em potencial: ou como essencialmente contrário à ideia de um levante popular, usando o envolvimento do Coringa como totem dessa desaprovação, ou crente que uma mudança real só poderá ser executada a partir da perda total de nossas noções de humanidade, como é o caso do personagem. De qualquer um dos lados, há em destaque um cinismo niilista que mascara uma falta de articulação social e política no texto assinado por Phillips. Depois de queimados os carros e dançada a dança purificante do vilão, o que pode ser feito por Gotham e pelo mundo? Coringa não sabe dizer, ou não se importa em saber. Assim, o filme se assume enquanto história de jornada, e não de destino — o que nos remete, tal qual um ouroboros de mediocridade, novamente à previsibilidade do desenvolvimento fraco de Fleck e seus dramas forçados.

Embora não seja muito menos niilista que isso, Batman ao menos articula uma resposta ao fato de que Gotham, enquanto avatar para o mundo em que vivemos, nunca realmente irá melhorar: a esperança. Enquanto vivermos na Terra, estaremos fadados a lutar por uma melhor sobrevivência, dia após dia. Para isso, precisamos dela, a força que nos mantém crentes em uma possibilidade de melhora, mesmo que passageira. Ao longo de suas quase 3h de duração, o filme de Reeves pontua mais a fundo as exatas mesmas questões que Phillips atropela em seu atarefado terceiro ato: a alienação das elites, a invisibilidade dos marginalizados, os descasos com a saúde mental pública, o ciclo de violência das grandes cidades e a corrupção sistêmica da política moderna. Ao mesmo tempo, o filme aponta com clareza, em manifestações que valem para a ficção e para a realidade, que o vigilantismo, o moralismo, a antipolítica e a revolta popular sem articulação intelectual humanizada são tão danosas ao tecido social quanto todas essas mazelas estruturais supracitadas.

Quando o assunto é texto e subtexto de crítica social, Coringa é como o filho de empresário que assistiu a Na Natureza Selvagem (2007) e chegou ao colégio particular revoltado com um sistema que ele não entende, enquanto Batman é como o professor de História bem intencionado do sistema público de ensino, que sabe exatamente o tamanho dos problemas que enfrentamos hoje; cansado, mas centrado.

O LADO SOMBRIO DOS WAYNE

Cena de Batman, dirigido por Matt Reeves
Warner Bros./Divulgação

Tanto Coringa quanto Batman abrem suas narrativas para essas maiores análises sociais a partir de revelações sobre o passado da Família Wayne. No primeiro, Fleck descobre que sua mãe já trabalhou como funcionária de Thomas e Martha, atribuindo o nascimento do protagonista a um caso com o bilionário (uma informação posteriormente posta em cheque pela própria trama). Já no segundo, Bruce Wayne precisa lidar com a desmistificação da idoneidade do pai, ao saber que o mesmo usou de uma aliança com o mafioso Carmine Falcone (John Turturro) para intimidar um repórter que ameaçava expor segredos de sua esposa. O jornalista acabou sendo morto pelo vilão, o que lançou o bilionário em uma crise moral e pode ou não ter influenciado na morte do casal.

Onde o filme de Reeves ri melhor que Coringa é na forma com a qual sua trama brinca com as certezas e incertezas em torno dos Wayne. Inicialmente apresentados como figuras benfeitoras das quais Gotham sente falta, eles gradativamente são revelados seres humanos complexos, compostos por erros e acertos em proporções similares. Movido por uma necessidade de honrar o legado do casal, Bruce tem de reconfigurar sua motivação como Batman quando entende que ambos não eram perfeitos, ainda que tenham imprimido nele seu código de moral humanista, que o impede de matar criminosos. É um processo de revelação progressivo que espelha a experiência do público.

Muitos elementos usados para quebrar expectativas nesse processo estão posicionados igualmente no filme de Phillips: a carreira política de Thomas, a admiração tida por ele nas altas rodas da sociedade de Gotham e o moralismo ligado à sua figura. Mas, por tomar emprestada a ótica de Arthur Fleck em todo o tempo, tudo envolvendo o figurão soa falso ou mal intencionado desde os momentos iniciais de Coringa. A antipatia imediatamente despertada por essa versão do pai de Bruce ainda é reforçada quando ele, vivido por Brett Cullen, se torna mais um agressor na longa lista de personagens que fazem de Fleck uma vítima. Ele é, portanto, estático; um monolito que existe apenas para colidir com o proto-Joker de Joaquin Phoenix e nada mais. Não seria problemático se esse não fosse Thomas Wayne, o que incide na maior diferença conceitual entre os dois filmes:

RESPEITO PELO PERSONAGEM

Painel de HQ do Batman
DC Comics/Divulgação

Das principais mudanças aos mais apelativos elementos de fan service, Batman está profundamente enraizado em alguns dos arcos dramáticos mais icônicos dos quadrinhos. O filme de Matt Reeves extrapola a essência individualista e egoísta do personagem só para reafirmar sua persona heróica ao final da jornada, trazendo um amadurecimento que o aproxima do líder da Liga da Justiça que muitos fãs conheceram nas páginas ou na telinha. Coringa não faz o mesmo, lançando mão da iconografia do personagem apenas para tornar mais comercialmente atraente uma narrativa que guarda muito pouco da sua essência.

Mais do que dar nome e sobrenome ao Príncipe Palhaço do Crime — algo longe de ser inédito, mas que por si só já diminui o impacto de um personagem cujo apelo se alimenta do mistério — o filme de Todd Phillips o encaixota ao retratá-lo repetidamente como uma rebelde vítima da sociedade. Algo similar a isso é parte do DNA do personagem, é claro, mas o Coringa transcende conceitos como vingança ou justiça. Em essência, o personagem é a desordem incorporada, pensada para fazer justa contraposição à ordem rígida representada pelo Batman. Matar, para o Coringa, não é um impulso que parte em resposta a algo direcionado a ele, mas sim da manifestação desse inconformismo com a ordem geral das coisas.

Além disso, o Coringa é, sim, um vilão. E não há necessidade de suavizar ou mascarar esse fato para humanizá-lo de alguma forma. Seus 80 anos de influência nas páginas e em outras mídias são, por si só, um atestado ao apelo amplo de um personagem que conquista fãs mesmo sem protagonizar histórias tristes de superação. Exaltar e analisar a natureza sedutora dessa vilania seria infinitamente mais complexo e rico do que fazer o que fez o filme de 2019, apresentando um palhaço triste que sofria, ria, dançava e frustrava quem esperava algo além disso.

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