Com possibilidades infinitas dentro de uma enorme gama de gêneros e formatos, as histórias em quadrinhos são um terreno fértil para o surgimento de obras com todos os tipos de propostas. Seja através de críticas sociais ou comédias descompromissadas, as HQs costumam integrar o zeitgeist por refletir constantemente o estado de suas épocas. A década de 2010 viu o levante de mulheres de Hollywood contra os constantes abusos perpetuados por figurões dos bastidores poucos anos após a Academia premiar a primeira diretora do sexo feminino. Não é de se estranhar que essa atmosfera de conquistas e lutas fosse refletido nos quadrinhos. Em 2018, foi lançado no Brasil o Gibi de Menininha, premiada HQ que nasceu da vontade de questionar estereótipos e tabus.
O Gibi de Menininha é uma coletânea de histórias escritas e desenhadas por 13 artistas mulheres que mesclam horror e erotismo - justificando o subtítulo de Historietas de Terror e Putaria. A HQ é organizada, coescrita e editada por Germana Viana, quadrinista com uma vasta bibliografia que relembra uma motivação dupla para o projeto: a vontade de trabalhar com amigas quadrinistas e desafiar o paradigma a respeito dos quadrinhos feitos por mulheres. “É legal para caramba, mas não precisa ser necessariamente uma característica da produção feminina. Por exemplo, eu faço ficção científica, aventura e super-heróis, a Camila Torrano só faz terror, a Roberta Cirne só faz terror… Pois então vou fazer um gibi de menininha para quebrar essa ideia de que mulher só faz coisa fofa”.
A autora acredita que esse conceito de “coisa de mulher” reflete outros tabus a respeito do que a sociedade encara como conteúdo feminino, especialmente em relação à erotismo. “Todo mundo acha que feminista não gosta de putaria, mas eu sou uma feminista que consumo pornografia. O que a gente não gosta é relação errada de poder. No Gibi de Menininha você não vai ver estupro ou pedofilia”. Além de Germana, Cirne e Torrano, completam o time Camila Suzuki, Carol Pimentel, Clarice França, Fabiana Signorini, Kátia Schittine, Mari Santtos, Milena Azevedo, Renata C B Lzz, Roberta Cirne e TalessaK. A publicação fez tanto sucesso, que venceu o prêmio Angelo Agostini de Melhor Lançamento de 2018 e Troféu HQ Mix na categoria Melhor Mix.
A conquista de espaço por quadrinistas mulheres acontece também na indústria norte-americana. A última década viu o surgimento de grandes nomes como G. Willow Wilson, roteirista muçulmana que criou a Ms. Marvel Kamala Khan e Kelly Sue DeConnick, que transformou Carol Danvers na Capitã Marvel. Ambas chamaram atenção pela renovação de personagens clássicos. Bem-vistas entre os leitores, as histórias levaram as duas autoras a grandes títulos como Mulher-Maravilha e Avante Vingadores, respectivamente. Contratada pela DC para escrever quadrinhos voltados ao público infantil, a romancista Kami Garcia viu Jovens Titãs: Ravena, título de estreia com arte do brasileiro Gabriel Picolo chegar a lista de best-sellers do The New York Times. Outro caso de destaque é Fiona Staples, artista responsável por Saga, HQ da Image Comics que figurou em 9 posições dentre as graphic novels mais vendidas da última década.
Engana-se quem pensa que um quadrinho feito por mulheres seja exclusivo para o público feminino. Durante a CCXP19, quando viu seus estoques esgotarem diariamente, Viana relembrou que o quadrinho passou longe de desagradar aos homens. “Tive poucas reações ruins”. Ainda que haja quem advogue que quadrinhos e política não se misturam, Gibi de Menininha é um exemplo de como a indústria cultural evolui ao passo da sociedade que a cerca. Na década de 1930, dois garotos judeus inspirados por inseguranças pessoais e as dificuldades em relação à Grande Depressão criaram o Superman, herói com força descomunal que combatia golpistas e corruptos. Já a paranoia causada pela Guerra Fria que tomou conta dos anos 1980 inspirou o mote principal de Watchmen, um dos maiores clássicos da nona arte. Gibi de Menininha, por sua vez, é um reflexo da maior força das mulheres - que só obtiveram direitos básicos, como votar, poucos anos antes do Homem de Aço fazer sua estreia nos quadrinhos.
Tendo em vista que já passou por episódios de intolerância durante sua carreira, a quadrinista passou a encarar o preconceito como uma espécie de motivação. “Já teve cara que veio reclamar que uma personagem de As Empoderadas era gorda. Meu marido e minha editora ficaram em pânico, enquanto eu estava me sentindo bem. Jack Kirby lutava com nazista, eu luto contra gordofóbico. Tô adorando!”.
O primeiro Gibi de Menininha fez tanto sucesso que no ano seguinte gerou um segundo volume com temática de faroeste, outro gênero pouco relacionado ao público feminino. Graças à pluralidade de histórias, temas e artes, ambos os projetos foram bem-recebidos por todos os públicos. Preocupada em criar histórias o mais relacionáveis possíveis, Germana Viana pouco se importa com quem se afaste do quadrinho por intolerância. “Eu queria que o mundo já estivesse lindo o suficiente para celebrar a diversidade - não só respeitar como celebrar - mas se tem caras que se chateiam com isso e eu irritei esses caras, eu tô fazendo meu trabalho certo.”