Death Note e a “demonização” de animes pela televisão brasileira

Créditos da imagem: RecordTV/Reprodução

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Death Note e a “demonização” de animes pela televisão brasileira

Death Note foi vítima de uma matéria sensacionalista da Record TV. Perseguições assim já aconteceram com outros animes de sucesso no Brasil.

Omelete
6 min de leitura
18.10.2021, às 11H54.
Atualizada em 06.07.2022, ÀS 14H21

Na noite do último dia 17 de outubro, a Record TV utilizou o seu programa Domingo Espetacular para fazer um alerta sobre crianças expostas a conteúdos violentos. O que causou tal comoção? O anime Death Note, lançado em 2007 e atualmente presente em diversos serviços de streaming. A “demonização” de uma animação japonesa não é novidade para quem acompanha o meio, e sempre vem acompanhada de argumentos pouco coerentes.

O dominical apresentou uma denúncia sobre como Death Note estaria influenciando negativamente crianças e adolescentes: "Especialistas denunciam que muitas crianças estão acessando material que tem uma aparência inofensiva, mas que trazem cenas de violência explícita capazes de chocar até a um adulto e provocar sérios danos à saúde mental", narrou a apresentadora Carolina Ferraz ao anunciar a matéria de 11 minutos de duração que pode ser vista no canal de YouTube do Domingo Espetacular. O tom era como se a emissora tivesse descoberto um grande inimigo oculto da sociedade.

Após uma rápida introdução para explicar aos telespectadores sobre o que se trata o anime Death Note, falando sobre o protagonista dono de um caderno no qual é possível escrever o nome das pessoas para que elas morram, a narração da reportagem explicou que a animação tem classificação etária entre 16 e 18 anos por conta de seu conteúdo, ou seja, é algo impróprio para menores. A matéria poderia ser encerrada aí, afinal uma pessoa mais nova não deve ter acesso a esse anime, mas isso não é levado em conta na matéria.

Matéria da Record sobre Death Note
Reprodução/RecordTV

Os relatos de pais e crianças na matéria pareciam menos apuração jornalística e mais fofoca. A primeira garota entrevistada nem ao menos assistiu a Death Note, apenas dedurou à reportagem uma colega dona de um caderno simulando o item de Light Yagami. A seguir a Record TV exibiu uma dramatização da história de uma mãe que presenteou a filha adolescente com o caderno de Death Note e, tempos depois, encontrou o próprio nome escrito no caderno. Patrícia Barboza e Walver Barbosa, coordenadores da Força Teen Universal, contaram que após esse episódio a mãe até pensou em devolver a criança para a guarda do pai. Vale destacar que a tal “Força Teen” faz parte da Igreja Universal do Reino de Deus, igreja fundada por Edir Macedo, também dono da Record TV.

O alarmismo com Death Note ganhou tons de verdade quando a reportagem relembrou casos polêmicos ao redor do mundo envolvendo o anime e o mangá (todos ocorridos há mais de 10 anos). Entre os mais pitorescos listados está a proibição na China e o caso no Japão no qual um professor foi punido após ameaçar escrever o nome de alunos não comportados em um caderno da morte igual ao do mangá de sucesso. Em nenhum dos casos foi provada a relação de Death Note com os problemas apresentados.

A matéria da Record TV ainda trouxe a denúncia de que réplicas do caderno eram vendidas livremente pela internet, mas em momento algum houve a explicação de que nenhum desses itens era um produto oficial. Inclusive o tom da matéria foi tão sensacionalista que uma pessoa desatenta poderia acreditar que escrever um nome qualquer ali era capaz de levar a uma morte real.

Brasil versus Animes

Quem acompanha anime e mangá no Brasil há tempos deve se lembrar de vários outros casos nos quais produções japonesas foram consideradas impróprias para crianças, ou mesmo relacionadas a demônios. No começo dos anos 2000, Gilberto Barros usou seu programa na Band para alardear que o sucesso Yu-Gi-Oh! e suas cartinhas eram satanistas. Há relatos por parte de otakus sobre muitos pais que jogaram fora ou queimaram as cartas do card game dos filhos. Na época o apresentador atacou também outros animes, como Dragon Ball Z, o que garantiu um ar de recalque à denúncia: pouco tempo antes a Band havia perdido os direitos do anime, um de seus maiores sucessos, para a Globo.

Reprodução

Já em 2004 a Globo foi impedida pelo Ministério da Justiça de exibir o anime InuYasha, o órgão público considerou o conteúdo violento para as manhãs da emissora. Na imprensa, o caso foi noticiado como “Governo veta ‘demônio’ de manhã na Globo”, manchete que apela para o sensacionalismo e preconceito que as pessoas traziam a respeito de conteúdos asiáticos. InuYasha até conseguiu ser exibido na TV Globinho em uma passagem relâmpago tempos depois, mas a emissora precisou retalhar cenas de uma versão já editada da animação.

Vários outros animes foram vítima de censura no Brasil. Podemos destacar Naruto, que teve a exibição proibida antes das 20h no SBT, ou mesmo a série de comédia Shin-chan, cuja exibição foi interrompida após um decreto emitido por César Maia, então prefeito do Rio de Janeiro. Caso tenha interesse em saber mais sobre essas proibições e censuras de animes no Brasil, leia este nosso artigo sobre o assunto.

Desserviço

A matéria exibida pela Record TV chama a atenção por vários motivos. Para começar, culpa Death Note por ser assistida por crianças, ignorando que existe uma classificação indicativa que deveria orientar os pais a restringirem o acesso aos filhos. Outro ponto importante é o quão atrasada essa discussão chegou à TV aberta: Death Note está longe de ser o anime mais relevante ou violento da atualidade, e essa polêmica da Record TV poderia ter sido bem maior se fosse ao ar uns 10 anos atrás. Se fosse um pouco mais antenada, talvez a matéria “demonizaria” produções atuais como Demon Slayer - Kimetsu no Yaiba ou Tokyo Revengers.

Death Note
Death Note/Divulgação

Por fim, precisamos destacar que não foi entrevistada qualquer voz contrária à narrativa da matéria, todas as pessoas atacaram Death Note e outras produções do gênero. Fora da reportagem, sabe-se que não há qualquer relação entre séries, animes ou jogos violentos com atitudes de pessoas violentas, mas esse é um discurso que vem se repetindo de tempos em tempos.

Embora em nosso meio uma matéria com essas acusações infundadas seja considerada uma piada, lembremos o poder que esse discurso pode ter com o público da emissora, uma das três mais vistas do país. A Record TV, até por ter laços muito estreitos com a Igreja Universal do Reino de Deus, é vista com bastante respeito por uma ala mais religiosa e conservadora da sociedade brasileira e uma denúncia absurda dessas pode levar os pais a proibirem que seus filhos acompanhem animações asiáticas como um todo. Inclusive animações apropriadas às idades das crianças.

Ao final da reportagem, um psicoterapeuta apresentou uma posição perigosa. Segundo o especialista, esse tipo de conteúdo não é indicado nem mesmo para adultos: "Isso é um lixo tóxico, é uma incivilidade", disparou. Se esse for o caso, talvez a Record TV devesse tomar cuidado com a própria programação. Afinal, ela é conhecida por exibir cobertura de crimes em seus programas jornalísticos, trazer novelas bíblicas repletas de cenas de violência e ainda traz como principal atração um reality show no qual recentemente um participante foi expulso após denúncias de assédio. Vai que tudo isso também influencia negativamente os jovens, não é mesmo?

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