Não tem como a série ser igual ao jogo. Eu preciso começar o texto desta forma para que não haja nenhuma dúvida do que eu acho sobre uma adaptação. Não é para ser igual, nem precisa e, sinceramente, eu nem gostaria que a série fosse a mesma coisa. The Last of Us - Parte 2 é uma obra-prima justamente por entender como pouquíssimos produtos o que de fato faz um game ser diferente. O envolvimento por meio do gameplay, as decisões forçadas, a obrigação de agir de um jeito que não concorda, a transformação ao longo de horas jogando. Tudo na sequência é inerente ao meio.
Dito isso, dado o excelente trabalho na primeira temporada, que não se dispôs somente a adaptar uma história perfeita para a televisão, foi inevitável não se decepcionar com algumas decisões do segundo ano - e boa parte delas devo atribuir à Ellie. Bella Ramsey, um talento indiscutível, faz tudo que está ao seu alcance, mas o texto de Neil Druckmann e Craig Mazin não parece encontrar o equilíbrio necessário para moldar os conflitos da protagonista. Enquanto no game a batalha mental de Ellie a faz caminhar para os mais profundos e questionáveis lugares da mente humana - e muitas vezes de forma proposital - a série a torna refém de circunstâncias, e não das próprias atitudes. Ou pelo menos equilibra as duas coisas para que, no fim do dia, você possa absolvê-la de qualquer crueldade.
Tornar Ellie menos madura não é um problema, já que adaptar a história é a tarefa da série. O problema é quando ela se afasta de forma abrupta do que fez The Last of Us ser o que é. Ellie é uma pessoa perdida. Ela não é heroína de nada, muito menos do game. Ela é uma assassina impiedosa que usa vingança como uma justificativa para exterminar pessoas e acabar com quem estiver pela frente. A agressividade e pessimismo com que enxerga o mundo nada mais é do que um reflexo da falta de opções e escolhas que ela teve. Joel tirou o direito de salvar pessoas. O vírus roubou sua infância, e a imunidade furtou o senso de comunidade. Ela sobrevive, mas a que custo? A solidão é o preço.
Esse aspecto é o que literalmente dá nome à história. É o que faz Joel se afeiçoar à ela e, no fim, o que faz Ellie vagar a esmo pelo mundo procurando um propósito. Quando a série decide deixá-la mais infantil, menos habilidosa e entregue à infortúnios, como nas mortes dos parceiros de Abby, Ellie fica mais próxima de uma heroína que dá azar do que uma pessoa transformada pelo terror que o apocalipse instaurou. E no início da temporada, quando se mostra uma adolescente irritante, cheia de personalidade e ávida pelo combate, vimos um pouco do que ela já era no jogo, só que com uma lupa bem mais profunda - afinal, é necessário intensificar características numa série que não terá tantos diálogos como no jogo. Por outro lado, os episódios do meio mostram uma jovem que parece buscar vingança, mas pouco afetada pelo entorno.
Jesse, Dina e Tommy se tornam personagens muito mais conectados com a tragédia do que Ellie, e isso pode ser visto quando Dina conta a Ellie sobre a primeira vez que teve que matar alguém, uma cena forte e que mostra o acerto na escalação de Isabela Merced. Pode-se indagar que essa é uma forma da história tornar a personagem anestesiada, querendo se distanciar doto. Mas a verdade é que o roteiro passa longe disso e precisa reforçar de forma insistente que, em algum momento, a vingança virá. E talvez o problema maior seja esse. A vingança de Ellie, em tese, não deveria ser só um ato - ela é o estado de espírito da personagem. Fosse ela jovem e habilidosa, adulta e destrambelhada, idosa ágil ou uma criança… não importa. Esse espírito de Ellie é isso que faz The Last of Us - Parte 2 ser uma história tão única. Se for para ser mais um herói no meio do apocalipse zumbi, até como foi o primeiro jogo, seria só mais um. Aqui é sobre como o ódio, o amor e a falta de esperança nos torna uma lembrança do que já fomos.
Essa é a jornada de Ellie. Ela desaparece, vira uma memória ambulante inclusive na cabeça do jogador. E na série, ela é quase enaltecida, encurralada por situações que foram criadas muitas vezes contra a sua vontade ou atitudes - e isso é grave não só por mudar a essência da personagem, mas por ir de encontro com o que acontece com ela depois. A proposta de tornar Abby uma vilã e, por enquanto, Ellie numa heroína, coloca The Last of Us no mesmo patamar de uma centena de outras histórias sobre zumbis, anti-heróis e vilões adoráveis. E se há algo que The Last of Us - Parte 2 não é, é algo comum.