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Lovecraft Country revisita o Massacre de Tulsa em episódio emocionante

Fórmula de história de viagem no tempo se presta a discurso pacifista

12.10.2020, às 10H48.

Em boa medida a carreira de sucesso de Michael K. Williams se deve ao seu papel como Omar Little em The Wire, entre 2002 e 2008. Com sua escopeta de cano serrado, Omar fazia o tipo Robin Hood, assaltava estoques e era o terror dos traficantes de Baltimore. Muito da mítica que se criou em torno do personagem se deve ao fato de Omar ser abertamente gay na série, afetuoso com seus parceiros numa cidade hostil, e de sua rotina de anti-herói violento ter ganho uma estatura de vingança justa contra a homofobia.

Quando Michael K. Williams interpreta em Lovecraft Country um personagem gay - que está numa jornada dolorosa de acerto de contas com o passado, assim como os demais personagens nesta América negra que cresceu à sombra do Massacre de Tulsa - é inevitável lembrar de Omar. Não é preciso fazer essa conexão para se emocionar com Montrose em “Rewind 1921”, o penúltimo episódio da temporada, em que Williams enfim ganha status de protagonismo, mas lembrar que Omar Little tomava nas mãos, à força, suas vinganças e seu próprio destino, deixa a história de Montrose mais pungente.

Porque afinal é impossível para Montrose - e para os EUA de forma geral, que há séculos tenta conciliar sua história de tensões raciais - refazer o passado. Não há gesto no presente (seja uma violência, um pedido de desculpas, um acerto afetuoso de contas) que seja capaz de remediar plenamente a experiência do trauma, então lidar de frente com esse trauma, tirar dele lições de valor para o futuro, é um caminho incontornável. No luto, Omar teria liquidado seus adversários para vingar uma injustiça, mas Montrose não tem essa opção em Lovecraft Country porque, acima de tudo, a série trata do macro, das violências primordiais, fundadoras da identidade americana, e negar a existência dessas violências seria equivalente a negar a história em si.

É uma sacada muito oportuna, portanto, que o episódio adote as fórmulas de sci-fi de viagem no tempo para abordar essa questão da reparação histórica. O que fazer com o passado, quando qualquer alteração nos eventos pode fazer desmoronar o futuro como o conhecemos, por imperfeito que seja? Ao escolher a proverbial cautela (mexer o mínimo no passado, para não brincar com as linhas do multiverso) Lovecraft Country está na verdade se posicionando pelo discurso afirmativo através do pacifismo. A citação do poema “Catch the Fire” de Sonia Sanchez, na forte cena do incêndio, não poderia ser mais clara: “Onde está seu fogo? / Não sente seu cheiro vindo do nosso passado? / O fogo de viver... não de morrer / O fogo de amar... não de matar”

Depois que Watchmen recolocou o Massacre de Tulsa na pauta, no ano passado, em meio aos debates contra o racismo e a violência policial, Lovecraft Country ficou com essa responsabilidade de abordar o evento sem que fosse, necessariamente, uma “novidade”. Ao adotar o viés do combate à homofobia, dentro desse episódio histórico de racismo, o seriado está fazendo duas declarações de pacifismo: primeiro, que o amor pode ser uma força revolucionária assim como a violência (é catártico ver o bastão de beisebol em ação mas também emociona demais ver os homens de mãos dadas, no momento de ameaça), e segundo, que a ignorância e a injustiça podem partir dos iguais (na cena muito forte do castigo com o galho), e assumir que todo homem é falho por natureza já é um passo para perdoar. 

De todas as imagens da cultura pop que nos acompanham em histórias de viagem no tempo, poucas são mais conhecidas que o momento em que Marty começa a desaparecer da fotografia e ao vivo enquanto toca guitarra em De Volta para o Futuro. Que ideia angustiante: desaparecer aos poucos e não de súbito, tomar consciência da própria morte ao longo de minutos, quando o passado é alterado. Pois era questão de tempo até Lovecraft Country dar a sua versão para esse tipo de situação, porque o que é o combate ao racismo e à homofobia senão uma grande batalha contra o apagamento do indivíduo, de um povo, da história? Michael K. Williams brilha em “Rewind 1921” porque consegue exprimir, mesmo na paralisia de Montrose, todo o drama que é encarar o apagamento de si.