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Crítica

Patrick Melrose | Crítica

Minissérie estrelada por Benedict Cumberbatch retrata as terríveis sequelas do abuso infantil

16.06.2018, às 14H18.

Ninguém, nem nos campos científico e psicológico, é capaz de dimensionar a amplitude dos danos que o abuso infantil pode causar numa psiqué. Sobretudo quando ele vem das pessoas que supostamente deveriam ser responsáveis por protegê-los acima de tudo. A distorção de laços parentais é devastadora em qualquer instância e é responsável por uma vida adulta tomada de inseguranças, ansiedades e compulsões. Não é uma questão de justificativa, mas de consequência. E, vista pelos olhos do autor de Patrick Melrose, Edward St.Aubyn, essas consequências são dispostas em dramaturgia de um jeito realmente impressionante.

Escrita por David Nicholls e dirigida por Edward Berger, a minissérie produzida pelo Showtime e estrelada por Benedict Cumberbatch cobre cinco dos livros escritos por Aubyn e que fazem parte de uma série homônima à produção. Os livros são também os títulos dos episódios da minissérie: "Bad News", "Never Mind", "Some Hope", "Mother’s Milk" e "At Last". As obras não são as únicas da série literária, mas são aquelas que vão fundo na história pessoal de Aubyn, que usou a ficção como recurso semi-autobiográfico para expurgar as experiências que devastaram sua infância e juventude.

A minissérie começa com a morte do pai de Patrick (Hugo Weaving), que entre os 5 e 8 anos de idade do filho, estuprou-o deliberadamente. A morte do homem traz à tona com mais força os fantasmas da vida do protagonista, que entra numa perigosa viagem pelas drogas em busca de anestesia. A cada episódio, idas e vindas no tempo ilustram a vida dele numa dinâmica de causa e efeito. A autodestruição constante promovida por sua personalidade é um reflexo direto de tudo de horrível que ele vivera em sua infância. Se não bastasse o abuso do pai, a mãe (Jennifer Jason-Leigh) era indiretamente conivente com a situação.

Aristocracia Falida

Há em Patrick Melrose uma identidade artística e isso em muito se deve ao fato de ter sido conduzida por um diretor e um roteirista específicos. São cinco semanas muitíssimo bem planejadas, em que cada episódio avança alguns anos na vida de Patrick e algumas camadas em sua devastada psicologia. As distorções promovidas pelo abuso, em junção ao uso constante de drogas, fazem a visão de Patrick das coisas ser tomada de recursos lúdicos. Isso vira um prato cheio para a direção, que recheia os episódios de ângulos que vão do poético ao bizarro numa mesma sequência. Isso é absolutamente condizente com as ambiguidades do personagem.

À primeira vista, a produção causa antipatia. Cercada da esnobe aristocracia inglesa, a história se polui dessa autossuficiência arrogante e o envolvimento com Patrick nessa primeira hora em que ele afunda nas drogas é hesitante. Durante um certo tempo, tudo que cerca Patrick parece cínico e presunçoso e isso em grande parte é responsável por impedir o personagem de perceber a lama onde está inserido. Não por coincidência, nesse primeiro momento ele resiste muito a aceitar a gravidade da própria situação. Todos os personagens secundários dividem com ele essa mesma natureza pretensiosa e demora até que a decadência da “nobreza” vaze pelas frestas da engrenagem social.

O segundo episódio é emblemático quando descreve a infância de Patrick, com o pai intimidador e cruel, a mãe dopada e submissa; e os amigos da família, que orbitam aquele universo com suas características esnobistas e maldosas. O texto da minissérie tem uma eficiência absurda em nos fazer perceber aquele tédio malicioso que toma os ricos e os faz capazes de diminuírem gradativamente o senso de empatia humana. A sequencia do jantar, quando todas essas latências vem à tona, é uma das obras teledramatúrgicas mais completas da atualidade. A partir do episódio 3, a crítica social e a decadência da aristocracia começam a aparecer e o salto no tempo que leva Patrick para os anos 2000 também traz a história para o momento em que o abuso e as negligências parentais são problematizadas e cobradas, o que leva a nobreza ultrapassada – condensada na figura do impassível Nicholas Pratt (Pip Torrens), amigo do abusador – a agonizar seu reacionarismo solitariamente. Cumberbatch vai de um extremo a outro desse tabuleiro com indescritível sensibilidade.

Enfim, a maturidade e a paternidade são o caminho que pode salvar Patrick da auto-destruição. Mas, a minissérie não dá soluções simples e nem redenções fáceis. O tratado definitivo dessa história tão bem escrita é que os maus tratos da infância podem resultar numa vida de constante necessidade de superação. Aubyn se preocupa em mostrar que não é só Patrick quem amarga as mazelas de uma criação negligente, mas toda a nobreza que o cerca, com suas manias antipáticas e assepsia afetiva. Mesmo assim, é especialmente comovente que ao som de "Tenderness", do Blur, o personagem saia de cena com certo otimismo e sob a tutela da frase derradeira: “o amor é a melhor das coisas”.

Nota do Crítico
Excelente!