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Séries e TV

Crítica

Hit Parade equilibra sátira e homenagem em celebração à cultura pop brasileira

Série de André Barcinski faz remix do cenário musical dos anos 1980 para divertir e fazer pensar

18.06.2021, às 21H52.
Atualizada em 18.06.2021, ÀS 22H17

Não há uma única forma para uma música cativar o ouvinte. Ela pode quebrar tudo logo de cara, chutando bundas sem perguntar nomes, ou pode exigir duas ou mais ouvidas, antes de virar favorita. É provável, entretanto, que as mais magnéticas sejam aquelas que te intrigam no começo, mas não surpreendem, só para engatarem em um crescendo que não para, apenas melhora, até terminarem; fazendo da surpresa o quanto você não consegue parar de pensar sobre elas - e o quanto quer ouvi-las de novo. Hit Parade, série de TV do Canal Brasil disponível na íntegra no Globoplay, é como essas últimas: começa boa, mas é conforme segue, se desenvolve e evolui que se prova entretenimento da melhor qualidade.

Criada pelo jornalista André Barcinski, que assina os roteiros ao lado do xará André Grynszpan, a série funciona como sátira aos bastidores da indústria musical brasileira nos anos 1980, ao mesmo tempo em que presta homenagem, de forma sagaz, a toda a cultura popular construída em torno dela. Para isso, Hit Parade faz algo muito parecido com o visto no filme Bingo: O Rei das Manhãs (2017), de Daniel Rezende; constrói um remix de referências, personalidades e marcas que compunham o imaginário brasileiro da época, as convertendo em versões ficcionalizadas que servem à história contada.

Reginaldo Rossi, Sidney Magal, Mara Maravilha, Pepê & Neném e Supla são só algumas das personalidades que inspiram a construção de personagens e narrativas da série. E é estimulante e divertidíssimo acompanhar como esse processo vai povoando um universo alternativo e como se somam mais e mais easter eggs, quase que num exercício à brasileira do que ficou tão comum nas superproduções do Universo Cinematográfico da Marvel (MCU). Onde Hit Parade brilha mais forte, entretanto, é na forma como ilustra com clareza, humor e acidez a constante guerra de poder entre gravadoras, rádio, TV e artistas, em um contexto em que as alternativas digitais de alcance do sucesso (como o YouTube ou os serviços de streaming) estavam ainda bem distantes.

Esse retalho de referências, por melhor construído que seja (e é realmente muito bom), não funcionaria se não fosse um fio condutor cativante, mas Hit Parade acerta também nesse ponto. A trama é desenvolvida a partir da rivalidade entre o músico frustrado Simão (Tulio Starling, em atuação despudorada e divertida) e o produtor musical Missiê Jack (Robert Frank, odiável no ponto certo), que catapulta a criação da gravadora Sensacional Discos. No comando do selo, Simão e a esposa, Lídia (Bárbara Colen, funcionando como o termômetro emocional de toda a trama) abrem mão de escrúpulos e passam a apostar em diversos trambiques e esquemas para conseguir, sem muito dinheiro, experiência ou estrutura, minar o sucesso de Jack.

Nesse caminho, Barcinski e Grynszpan inserem personagens que, independente do tempo que têm em tela, deixam sua marca. A começar pela equipe da Sensacional, com o talentoso músico (Luiz Rocha) e a carrancuda advogada Silvana (Docy Moreira), passando pela magnética cantora e dançarina Natasha (Nash Laila) e seu romance conturbado com o inexperiente galã de novelas Duda Talagão (Bernardo Filaretti), até chegar nas muitas figuras envolvidas nos trambiques e artimanhas de Simão. Um jovem interiorano que é convencido a dublar músicas em inglês como se fossem suas; um falso cigano de peruca; um velho cantor esquecido que age como estrela internacional; e a lista continua. É uma enchurrada de personagens, mas nenhum deles passa por Hit Parade à toa. Há sempre, em cada rosto e em cada arco dramático, um pedacinho do Brasil dos anos 1980, destacado para fazer rir e pensar.

O apresentador de TV Lobinho (Odilon Esteves), porém, é quem brilha mais forte em meio a esse colorido rol de personagens. À frente do badalado programa Toca-Discos, da Rede Platina, o personagem surge como o gatekeeper do sucesso para artistas emergentes, selecionando a dedo (e à base de chantagens) quem terá chance em seu palco. Com o decorrer da série, entretanto, ele ganha profundidade, humanidade e carisma, ancorado na atuação multi-facetada de Esteves e em um arco que toca diretamente na manipulação midiática para manutenção das aparências, abordando homofobia e sexismo estruturais, na indústria de entretenimento. São temas sérios que ajudam a dar profundidade ao universo da produção sem tomar a frente da história, o que o texto também faz com a repressão militar à cultura, durante a ditadura, o boom da AIDS e o consumo de drogas (lícitas e ilícitas).

Na direção, o experiente Marcelo Caetano (do premiado Corpo Elétrico, de 2017) compõe as cenas com esmero digno de cinema, o que se soma à direção de arte de Maíra Mesquista e direção de fotografia de Wilssa Esser para criar um mergulho enevoado e encapsulado em neon, laquê, cabelos armados e viagens em chroma key tosco; tudo deliberadamente desenhado para tornar a experiência de volta no tempo o mais imersiva possível, com louvável sucesso. A trilha sonora cumpre o mesmo papel, com músicas originais de embalagem retrô competentes, ao lado de obras conhecidas do cancioneiro popular: "Porto Solidão", "Em Plena Lua de Mel", "Feiticeira", entre outras. Nas participações especiais, destaque para o folclórico roqueiro Ovelha, que toca uma versão acústica de "Alma de Gato" em cena que remete a Seu Jorge cantando David Bowie em A Vida Marinha com Steve Zissou (2003).

Com tanto acertos, o seriado só derrapa em dois pontos. Primeiro, na qualidade técnica do áudio, que é inconstante durante alguns diálogos e denuncia inserts de fala que acabaram mal equalizados. Segundo, na forma como o ritmo acelerado de entrega de informações, personagens e referências acaba pulverizando o impacto emocional de arcos dramáticos que deveriam se sobressair. Um acontecimento no último episódio da temporada, em particular, acaba apressado, mesmo com o uso sensível da linda canção "Sangrando", de Gonzaguinha, para sintetizar a emoção adequada. Ainda assim, Hit Parade é uma das mais divertidas e bem produzidas séries de TV nacionais dos últimos tempos, obrigatória para quem anseia por mais representação da cultura pop brasileira nela própria. Mantendo o nível desse primeiro ano, ou até elevando-o, eu não reclamaria se essa bela música ganhasse uma "Parte 2". Ou uma "Parte 3". Ou um álbum inteiro, que fosse.

Nota do Crítico
Ótimo