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Séries e TV

Crítica

Heartstopper floresce em um amor improvável a promessa de felicidade

A adaptação dos quadrinhos de Alice Oseman trata com gentileza os obstáculos da adolescência e foca no poder do acolhimento

22.04.2022, às 10H14.
Atualizada em 14.05.2022, ÀS 16H40

Heartstopper é aquela série que deixa qualquer com um coração quente, com a sensação de beijo no rosto, vibrando positividade, avistando poder viver em um mundo onde as diferenças existem, mas não minam a possibilidade de ser feliz. É com este sentimento que a Netflix lança sua mais nova série de romance adolescente com temática LGBTQIA+, inspirada nos quadrinhos de Alice Oseman, que atua também como roteirista e produtora executiva neste projeto tão sensível, com direção assinada por Euros Lyn (Doctor Who).

A trama se desenvolve ao redor de Charlie (Joe Locke), um adolescente contido, gentil, dedicado aos estudos, mas que luta para curar as feridas do bullying massivo que recebeu no ano anterior, desde que seu colégio descobriu sobre sua sexualidade, se assumindo gay. Tudo muda durante o novo ano letivo e a vida ganha novas cores quando passa a se sentar ao lado de Nick (Kit Connor), um aluno mais velho, popular, destaque do time de rúgbi, mas com muitas dúvidas sobre sua heterossexualidade. Com pitadas de Atypical e Young Royals, uma amizade nasce para mais tarde florescer em algo sincero e apaixonante.

A história poderia focar apenas nesse romance improvável com fórmula batida, mas não, a série permeia muito mais do que isso, de forma delicada e eficiente. Charlie passa pelos obstáculos da adolescência com o apoio de um grupo de amigos, que retrata bem como uma rede de apoio deveria funcionar. Composta por Tao (William Gao) seu melhor amigo hétero, superprotetor e ciumento, Elle (Yasmin Finney), uma aluna transsexual que estudou com os garotos anteriormente e agora frequenta o colégio vizinho, para garotas, e Isaac (Tobie Donovan) um personagem silencioso que infelizmente não tem muito destaque no núcleo.

Além da dupla protagonista, os episódios são recheados de diversidade, com Tara (Corinna Brown) e Darcy (Kizzy Edgell), um casal que está passando também por um momento importante, assumindo a relação lésbica publicamente e os desafios que isso implica no dia a dia. Com muita leveza, mostram que, apesar da dificuldade, há beleza em se posicionar em um mundo onde a heteronormatividade impera. Isso também aponta na série a preocupação de exemplificar diversas fases da jornada queer na juventude, não só a descoberta da sexualidade, mas também o processo de se aceitar, de bancar uma decisão e lidar com as consequências disso. São diversos momentos que um adolescente LGBTQIA+ precisa enfrentar nesta época escolar, é complexo, mas a trama se desenvolve com veracidade e otimismo utilizando múltiplos arcos de personagens.

A série no geral, traz entre as cenas, desafios reais e tangíveis da adolescência, em um tom doce sem perder a essência de uma história que lança, ao coração de muitos, a esperança de que a vida pode ser complicada quando se é diferente, mas prazerosa e recompensadora ao final. Não há como descrever a felicidade de contemplar um projeto voltado para o público LGBTQIA+ que não se apoia em desgraças ou fatalidades, mas sim na simples felicidade de viver os amores e as amizades do jeito que podem ser vividas quando se é jovem e está imbuído pelo sentimento da descoberta. É interessante acompanhar os 8 episódios, que apesar de serem curtos, conseguem explanar discussões muito pertinentes, mesmo com a pouca idade, os personagens lidam de um jeito muito maduro com os conflitos, inclusive durante os diálogos que passam longe do forçado e cafona.

Heartstopper é um projeto de adaptação que deu muito certo, fiel a obra original, foi construído de forma cuidadosa, com detalhes de encher os olhos de qualquer fã dos quadrinhos. Entre os episódios é possível notar elementos gráficos que remetem aos traços da HQ, como corações, e folhas que indicam a passagem de um momento a outro. Aqui fica também o exemplo, de que é notável a diferença que se faz em uma produção que contempla a presença da autora da trama e exerce sua visão de quem conhece intimamente seus personagens e seus passos, aqui tudo é calculado e encaixado com maestria, nada respinga fora do que é proposto. Todas as adições que o roteiro aplica às telas condizem com a história original, destrinchando um assunto, ou apenas dando mais espaço para tramas adjacentes que não foram exploradas na HQ.

Há de ser pontuada a presença importante da família dos protagonistas ao redor da intensa amizade que desabrocha no romance. É refrescante ter em cena mães acolhedoras, que ouvem e apoiam, como Sarah Nelson (mãe de Nick), interpretada por Olivia Colman, que entrega no olhar a cumplicidade e o amor fraternal que é pedido diante das situações. Tipicamente, enredos LGBTQIA+ são pautados pelo preconceito, não que neste não exista, porque afinal de contas, é uma realidade, mas não é o foco, o assunto aqui é a possibilidade de superar barreiras existenciais com o entendimento e o carinho daqueles que mais amamos. Isso com certeza, apesar de simples, faz uma diferença gigantesca para quem se conecta com o tema, tanto para quem precisa ser acolhido, tanto para quem deve acolher, elevando o nível da carga emocional na narrativa.

É difícil encontrar algo que não funcione neste romance, as atuações seguem o mesmo patamar do roteiro, Joe interpreta Charlie do jeito mais doce e carismático possível, é visível a angústia, o medo e baixa autoestima que carrega de traumas passados, mas também consegue achar na atuação meios que catapultam o personagem para o desenvolvimento dos últimos episódios, tudo de forma sutil e real. Kit dá vida a Nick na mesma intensidade, sensível e maduro, além da grande presença em cena, completa a química do casal de um jeito eloquente e palpável. Ao todo, a decisão do elenco é coesa, atores que se aproximam muito da idade real dos personagens, sem mega produções de cabelo e maquiagem, deixam a atuação cada vez mais perto do ambiente escolar juvenil, diferente de outras produções da mesma plataforma.

Mais do que sexualidade, a história joga luz sobre questões para que todos, de maneira geral, possam se identificar, como a valorização dos sentimentos, autoestima e a libertação de estigmas. Incentiva a soltura de amarras que estejam suprimindo sua verdadeira personalidade por expectativas de terceiros. Heartstopper é uma série aconchegante, simples, real, mas que grita sim ao amor, que escancara as diferenças e faz sentir como é bom se abrir para novas experiências sem medo de simplesmente ser feliz.

Nota do Crítico
Ótimo