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Crítica

Glee - 5ª Temporada | Crítica

Destino e falta de planejamento se misturam na trajetória e transformam a quinta temporada na mais crítica da série

21.05.2014, às 17H42.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H38

Ryan Murphy é um homem peculiar... O criador da grotesca Nip/Tuck e da bizarra American Horror Story começou na TV com um trabalho que pode ser visto como o primeiro rascunho de Glee. A série Popular durou apenas duas temporadas, mas uma olhadinha nela já deixava bem claro que uma coisa da qual o showrunner entendia era de comportamento social adolescente. Porém, a perspectiva de Murphy para tudo sempre foi sombria e mesmo lá, disfarçada nos episódios solares de Popular, estava a acidez e o deboche característico do seu trabalho.

Assim como era de se esperar depois de um evento chamado High School Musical, a chegada de Glee na TV foi ambígua. Durante a premiada primeira temporada, os elogios da crítica esmagavam o movimento natural da parcela cínica da audiência e Glee sobreviveu a ela sem precisar fazer esforços. No ano dois, com o sucesso, Murphy aproveitou para fazer o que já estava nos seus planos desde sempre: falar de bullying de maneira ostensiva e defender os direitos dos gays. Isso soou como panfletário para a crítica e alguns espectadores e a série começou a ser considerada um sucesso sem justificativas. Mesmo que a terceira temporada tenha sido eficientíssima, o estigma estava determinado: Glee era a piada do dia.

Com a formatura dos alunos originais, a quarta temporada era um desafio: inserir um novo elenco, abrir um núcleo fora da escola e garantir a audiência que, embora estável, caíra pela metade entre os anos três e quatro. Glee é aquele tipo de série que depende de identificação e apreço pelo gênero teen-musical. Há uma infinidade de transgressões incluídas no texto e nos eventos, mas elas só podem ser percebidas quando vistas de perto. A edição rápida e o compromisso constante com a franqueza tornaram Glee uma série imensamente sagaz, mas encurralada pelos argumentos eruditas de que não pode ser levada a sério "como uma série de verdade". Porém, acima da descredibilidade sempre esteve uma narrativa nervosa, uma palavra provocativa e uma direção musical impecável.

Fim dos Tempos

As coisas para Glee começaram a se complicar nos últimos quatro episódios da quarta temporada, quando um dos protagonistas, Cory Monteith, assumiu seu vício em drogas e pediu ajuda, recebendo de Ryan Murphy o sinal verde para deixar as gravações e passar pela reabilitação. Com isso, esses últimos quatro episódios tiveram que ser revistos, reeditados, o clímax do season finale mudou de direção e adiou o crescimento do personagem Finn para o ano seguinte. O tombo foi imediatamente perceptível, com a storyline sendo esburacada por soluções de última hora.

Durante o hiato para a quinta temporada, Monteith ficou por algum tempo na internação e depois que saiu, começou o trabalho de divulgação do ano seguinte. Os planos eram evidentes: Finn estava sendo preparado para assumir o lugar do professor Will (Matthew Morrison), enquanto Rachel (Lea Michele) seguiria seus passos em Nova York, rumo à Broadway. A Fox garantira mais dois anos e tudo estava arrumadinho para encerrar todos os ciclos nessas próximas temporadas. Mas, inesperadamente, Monteith faleceu de uma mistura fatal de drogas e álcool algumas semanas antes das gravações começarem.

Os problemas se amontoaram nos bastidores da série. Por questões contratuais, ainda que o canal tivesse sido gentil em levantar até a possibilidade de adiar a temporada por um ano, todo mundo preferiu trabalhar, inclusive Michele, que teve que passar pela horrível experiência de chorar na série a morte falsa oriunda da morte verdadeira de seu namorado. No meio da pressa e misturando responsabilidade com terapia - o que mostrou-se um erro -, Murphy encomendou um início de temporada movido pela força e não pela segurança.

O McKinley agoniza

Nenhum divisor de águas deveria ser pautado na morte. Depois de estrearem com um regular tributo duplo aos Beatles e de se despedirem de Monteith num episódio que fez todos os personagens lidarem com a morte de Finn, a série começou sua primeira leva de episódios obrigatoriamente necessários até a pausa depois do Natal. Só havia um problema: enquanto o núcleo de Nova York não podia ser afetado pela morte de um personagem do qual não compartilhava, o núcleo escolar dependia dele para manter sua continuidade e seu planejamento.

Sendo assim, os roteiristas optaram por episódios temáticos, sem arcos grandes, um recurso já conhecido da série em momentos onde uma respirada era necessária. Porém, depois de quatro, cinco episódios temáticos seguidos, os espectadores começaram a sentir o cansaço da fórmula e começaram a pedir por histórias que justificassem a semana seguinte. Ainda que divertidos, episódios centrados em Katy Perry, Lady Gaga, Miley Cirus, Billy Joel e até em fantoches não conseguiam deixar escondidas as deficiências de um evento que aniquilou toda a organização de antes.

Musicalmente, essa primeira fase da quinta temporada teve ótimos momentos e covers de "Wide Awake" (Katy Perry) e "Seasons of Love" (do musical Rent), que ficarão marcados como alguns dos melhores da série. Em perspectiva, muitos desses episódios iniciais mantiveram o mesmo deboche e humor negro de anos anteriores. A superfície era familiar, mas havia um ponto cego nessa narrativa que sempre nos dava a impressão de que a série não sabia para onde estava indo.

E enquanto o elenco novo se contorcia para se manter relevante, Demi Lovatto e Adam Lambert foram escalados para tentar reacender o interesse pelo programa. Mesmo em luto, Lea Michele mantinha Rachel nos trilhos planejados para a personagem, mas, no colégio, a sensação era cada vez maior de que sem Finn, Will passaria mais dois anos inteiros organizando lições musicais que já tínhamos visto antes e lidando com problemas adolescentes que não completam um cardápio muito grande. Asim, depois do mais insano episódio de Natal já produzido, a série entrou em um longo hiato e muitas decisões precisaram ser tomadas.

O interlúdio chamado episódio 100

A primeira notícia liberada era de que após esse quinto ano, a série mudaria definitivamente pra Nova York. Era natural, já que esse núcleo parecia ser o único com uma história a longo prazo pra contar. No entanto, em algum momento essa decisão também soou frouxa e um pouco antes das gravações recomeçarem, Murphy anunciou que a série abandonaria o núcleo escolar. Veríamos então, inesperadamente, a despedida de vários personagens e a mudança definitiva de outros para a Big Apple.

O evento de ruptura seria o episódio 100, que traria quase todo mundo de volta, resolveria todas as poucas pontas soltas e recomeçaria do zero. Assim, quando voltou do hiato, Glee tratou logo de criar uma storyline climática, na briga entre Rachel e Santana (Naya Rivera). Diante do 100º episódio haveria o problema delas para resolver, além de uma competição nacional e o fio da navalha para o Glee Club. Sob esse aspecto, os episódios 9, 10, 11, 12 e 13 foram os mais fortes do ano, justamente por terem sido planejados para lançar, explorar e encerrar ciclos.

O retorno dos personagens clássicos foi uma delícia e a escolha de revisitar antigos sucessos acabou sendo acertadíssima. "Toxic" (Britney Spears), que já foi incrível na segunda temporada, ganhou um tango enlouquecedor e a versão de "Don't Stop Believing" (Journey) apresentada no emociante final acabou sendo tão boa - ou melhor - que a primeira. Os roteiristas tomaram a decisão de realmente ignorar o elenco novo e focar tudo nos personagens clássicos, selecionando apenas seis para continuar na jornada. Além de Rachel, Santana e Kurt (Chris Colfer), apenas Artie (Kevin McHale), Sam (Chord Overstreet), Blaine (Darren Cris) e Mercedes (Amber Riley) seguiram para viver as aventuras da cidade grande. Seria uma nova tentativa, uma nova mudança, uma outra reconfiguração, a segunda no mesmo ano. Renúncias demais e expectativas demais. Glee já mostrava sinais de que, depois do que aconteceu, começara a perder-se de si mesma.

A maçã envenenada

A bruxa ofereceu e Glee mordeu... Ao som de "Downtown" (Petula Clarke), os seis remanescentes do que já tinha sido a série um dia, tomaram a atmosfera de Nova York para tentar um recomeço. Ao perder as nacionais, o Glee Club acabara, as portas foram fechadas e não veríamos mais Unique (Alex Newell) andando montado pelos corredores do McKinley. A mudança era tão drástica que realmente parecíamos diante de outro programa, onde não haveria mais números otimistas no auditório e montagens totalmente catárticas nas competições anuais (como o cover do U2 na última dessas disputas). Só nos daríamos conta disso no decorrer do processo, quando a suculência da maça novaiorquina começasse a parecer perigosamente amarga.

As intenções eram ótimas, mas os primeiros episódios dessa nova fase soavam assustadoramente ingênuos e descentralizados. Os roteiristas trouxeram Mercedes de volta, uma personagem que nunca foi das mais populares, e insistiram num romance com Sam, tirando dele o ótimo foco na carreira de modelo. Além disso, Santana desapareceu (gerando até uma série de rumores de demissão), Artie não evoluiu dentro de seu núcleo cinematográfico e Kurt e Blaine caíram numa espiral exaustiva de tédio e falta de química. E se não bastasse a inércia dos personagens, ninguém conseguia uma storyline que não fosse procedural, sendo Rachel a única que vinha de uma evolução gradativa.

O episódio "Opening Night" recuperou um pouco o fôlego, flertou com o lúdico ao trazer Sue (Jane Lynch) de volta e mostrou Rachel alcançando seu apogeu e estrelando na Broadway. Foram dela os únicos movimentos planejados desse ano, já que assim que chegaram à estreia, os direcionamentos de roteiro começaram a trabalhar a metalinguagem: Rachel começava a tentar entrar numa série de TV. Assim, enquanto os colegas derrapavam em histórias fracas e transitórias, ela continuava numa crescente visível de transformações. O que soa até comovente, a forma como Rachel sobrevive e faz viver o espírito de Glee não é nada para ser ignorado.

A audiência, enquanto isso, despencava. O season finale foi bom, com a piada velada fantástica em torno de Girls e Lena Dunham, com um texto afiadíssimo e ao menos um bom número musical. Nessa última parte do agonizante quinto ano, as decepções alcançaram até a sempre competente equipe musical da série. Embora recheados de clássicos (que trouxeram até Shirley McLaine para uma participação), coisas despretensiosas como o cover de "Story of My Life", do One Direction, acabaram sendo inusitadamente bem sucedidos. No finale, um pouco dos números grandiosos e lúdicos que víamos muito no colégio, tentaram voltar ao som de "Pompeii" (Bastille) e conseguiram  um tostão do efeito pretendido.

Antes mesmo desse último episódio ir ao ar (a temporada também terminou com 20 episódios ao invés de 22), Murphy já havia mudado de ideia de novo e despediu-se novamente de outros personagens, voltou atrás na decisão de permanecer em NY na sexta temporada e jogou ao vento pedaços de ideias que não parecem nada conectadas. Na olhadinha que Rachel dá pra câmera no último segundo do episódio final está embutida a única certeza que temos acerca do que Glee nos reserva: no que diz respeito à Miss Berry, não precisamos nos preocupar. Ela é uma instituição ficcional de representação do sonho... Como Carrie Bradshaw, ela é um olhar compartilhado do mundo e talvez por isso sua persona seja tão forte e tão resistente aos tumultos dessa triste temporada.

Glee sempre foi uma ferramenta de acesso ao otimismo, ainda que por vias muito ácidas em alguns momentos. Ela sempre foi sobre imbuir-se de paixão pela música e pelas imagens que ela constrói nas regiões oníricas da nossa consciência. Você ouve uma canção e pela letra você levanta um cenário. Em Glee, esse cenário acontece. É uma vida embalada de alegoria e, por isso mesmo, transmite afetos e verdades pela emoção do diálogo e da canção juntos, como se estivessem entreatos.

Nota do Crítico
Bom