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Crítica

Cuphead - A Série é viagem nostálgica bonita, mas que não leva a lugar algum

Adaptação do celebrado game de 2017, produção da Netflix é muita forma com pouco conteúdo

22.02.2022, às 12H30.
Atualizada em 22.02.2022, ÀS 15H42

Apaixonados pelo estudo da História da Animação certamente vão se deleitar com os 12 episódios que compõem a primeira temporada de Cuphead - A Série (ou The Cuphead Show!, no original). Recriando com riqueza de detalhes as marcas do pioneiro estilo rubber hose, que marcou o início do gênero nos Estados Unidos, a série traz um sem número de referências à chamada Era de Ouro dos anos 1930 — ao mesmo tempo em que encontra espaço para homenagear a Disney, empregar técnicas de stop-motion e misturar essas linguagens mais clássicas com um pouco do caos pós-moderno de hits recentes como Hora de Aventura.

Visual e acusticamente (a dublagem brasileira é um show à parte), é tudo realmente muito lindo. Planos cheios de cor, movimento e humor visual são apresentados em rápida sucessão, sempre embalados em uma sonorização retrô que inclui números instrumentais de diferentes vertentes do jazz. Mas, se o estilo musical centenário é conhecido por sua capacidade de acomodar o improviso, permitindo aos mais hábeis compositores que misturem variadas e improváveis notas em uma só obra, Cuphead deixa a desejar ao soar insistentemente monotônica — e não musicalmente. Superficial, a série não se empenha em igualar o nível de sua forma ao do seu conteúdo, o que resulta em um fiapo narrativo que deve alienar aqueles com mais de oito anos de idade e em busca de algo além de um desfile virtuoso de nostalgia.

Com direito a introdução cantada e title card na melhor pegada Tom e Jerry, cada capítulo de Cuphead traz uma desventura da dupla de irmãos Xicrinho e Caneco (adaptações inspiradas para o nome do personagem-título e de Mugman), na surrealista Ilha Tinteiro. Esse surrealismo, ainda que criativo, é sempre filtrado sob um prisma inocente que mina as liberdades do resgate ao rubber hose. Ora, parte do charme transgressor de revisitar essas animações clássicas está na falta de noção etária que elas trazem, sob o olhar de hoje.

Cigarros, fábricas com regimes de trabalo opressores, armas de fogo, insinuações sexuais, jogos de azar e por aí vai; todos elementos para lá de maduros que volta e meia encontravam espaço em desenhos infantis dos anos 1930 (e até em décadas imediatamente posteriores), são relegados, no máximo, ao subliminar de Cuphead. Sanitizando sua sátira, a série da Netflix admite mirar na criançada em primeiro lugar — justamente a parcela do público que menos irá valorizar tanto empenho em resgatar um passado já distante e dificilmente enxergará ali apelo a ponto de preterir o que já curte.

Em meio a esse tiro seguro que pode sair pela culatra, o que há de mais ousado em Cuphead é o ocasional emprego de tropos do horror para agitar os episódios, em especial na subtrama que conecta cada um deles de forma bastante vaga. É que, logo no primeiro, Xicrinho acaba caindo em uma armadilha do Diabo, oculta pelo Cramunhão em um brinquedo de parque de diversões. Devendo sua alma ao Mochila de Criança, ele volta e meia precisa parar o que está fazendo para, com a ajuda de Caneco, encontrar uma nova forma de enrolar o Pé de Bode. A repetição bem dosada desse conflito seria uma forma rica de abrir espaço para o aprofundamento dos protagonistas, da relação entre eles e com o público, mas tudo acaba tão segmentado que qualquer tensão é logo sacrificada.

Fãs de Cuphead: Don’t Deal With the Devil, o game de 2017 que inspirou o seriado, sabem que o conflito com o Tinhoso é uma referência direta à trama do jogo. O problema é que, na animação, ele acaba pasteurizado e esvaziado de sentido em comparação — a exemplo da própria estética rubber hose. Voltada a um público mais velho, hardcore e retrogamer, a celebrada produção da Studio MDHR ancora na treta dos irmãos com o Coisa Ruim sua sátira à infantilização do profano, tão frequente nos desenhos animados clássicos. Que Xicrinho e Caneco perdem suas almas para o Estrela da Manhã em um jogo de dados num cassino, ou que uma luta-chave para o avanço na gameplay é travada contra um gigante charuto antropomórfico não é mero charme cômico: é a forma criativa com a qual o game constrói texto a partir de contexto.

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Cuphead - A Série ainda falha em repetir essa sensibilidade uma outra vez, ao descartar um dos pilares estéticos e temáticos do jogo que a inspirou. Mais do que recriar o pacote audiovisual básico dos desenhos de 1930, Don’t Deal With the Devil vestiu de rubber hose a estrutura do violento gênero de jogatina run and gun, muito popular nos anos 1980 e 1990. O resultado desse anacronismo foi uma experiência sensorial desafiadora, mas inebriante, com o ludismo caótico da animação retrô se tornando ainda mais envolvente graças à energia e à ação frenética do tiroteio digital — com Xicrinho e Caneco atirando raios a partir de “arminhas de mão”, em novo encontro da inocência da infância com a maturidade. Por mais lúdico e universalmente cativante que pudesse ser seu visual, esse nunca foi um jogo para crianças.

Essa dissonância em relação à obra original deve levar muitos espectadores a eventualmente se perguntarem: para quem, exatamente, é Cuphead - A Série? Além dos fanáticos por técnicas de animação, é difícil pensar que o seriado vá levar crianças a deixar de lado desenhos modernos mais inventivos e narrativamente envolventes como A Casa da Coruja ou Gravity Falls, muito menos que o espectador adulto ou fã dos games vá se sentir absolutamente contemplado por uma adaptação infantilizada a ponto de parecer subestimar a inteligência do seu espectador. Para uma produção que é tão consciente quanto aos elementos antigos que resgata para compor sua estética, é uma pena que ela tenha inadvertidamente incluído no pacote um certo cheiro de naftalina.

Nota do Crítico
Regular