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Crítica

Boo, Bitch assenta sua boa metáfora em um terreno de absurdos

Minissérie da Netflix é promissora, mas sua tentativa de usar a morte como metáfora se perde no enredo frágil

12.07.2022, às 10H26.

No final dos anos 90, quando M. Night Shyamalan mudou a forma como roteiros são escritos e valorizou o recurso do “final surpresa”, ele fez isso através de uma história completamente calculada para não deixar brechas. O roteiro de O Sexto Sentido funcionava de uma maneira tão bem amarrada que até hoje, se você reassisti-lo, dificilmente vai encontrar brechas que o enfraqueçam. Para que fosse possível convencer o público de que o personagem de Bruce Willis estava morto desde o começo, Shyamalan teve que pensar em todas as variáveis.

Boo, Bitch não é nenhum drama sobrenatural, pelo contrário. A série é uma comédia rasgada, muitas vezes nada sutil e que se pauta em códigos comuns ao universo das séries adolescentes. A ordem aqui – como não poderia deixar de ser nesse momento do mercado – é usar um elemento fantástico para traçar paralelos com a vida, usando-o como analogia para a transformação. Contudo, apesar de ser uma comédia, a série tem em comum com os dramas a mitologia fúnebre a que se propõe e uma virada que muda tudo para o espectador.

A história apresenta as amigas Gia (Zoe Margaret Colletti) e Erika (Lana Condor), que apesar de não terem absolutamente nenhum traço que lhes coloque no lugar de oprimidas pela escola, são oprimidas pela escola. Apesar de Gia estar ali dividindo aquele protagonismo, o foco fica em cima de Erika, que logo no começo do High School passou por um mal entendido que fez todos acreditarem que seu nome era Helen Who, tornando seu último ano na escola a última oportunidade de ter uma experiência escolar decente.

Tudo vai bem nos planos das meninas, até que depois de uma festa épica, onde Erika conseguiu realmente se fazer notar, um alce atropela as duas e Erika descobre que não sobreviveu ao acidente. Ela e Gia questionam porque a “passagem” não foi feita completamente e se algo precisa ser resolvido no nosso mundo para que a paz eterna seja encontrada. Começa, então, a jornada para descobrir quais assuntos Erika deixou pendentes, para que após a resolução deles, ela possa ascender. Aparentemente, o plano espiritual mantém espíritos presos à terra se eles não tiverem beijado o crush ou ido ao baile de formatura... e esse é só um dos problemas com os quais Boo, Bitch não consegue lidar.

The Walking Dead

(Atenção: Sérios spoilers a seguir)

As fragilidades da trama da série começam já no acidente que “mata” Erika. Para os propósitos do texto, o corpo da menina não pode ficar visível nem para ela mesma. A solução encontrada, então, foi que um alce imenso caísse por cima e ali ficasse por um longo tempo, sem que o corpo não fosse encontrado nunca, por ninguém, não importando o quanto ele cheirasse mal ou atraísse animais que devorariam tudo. A coisa toda não tem sentido, mas vai piorando consideravelmente em seguida.

O roteiro da criadora Erin Ehrlich também precisa que Erika pense que está morta, sem estar morta. Assim, começa a execução de uma mitologia tosca, que tenta convencer o espectador de que mesmo morta, Erika pode ser tocada, pode comer, beber, fazer xixi, tudo que uma pessoa viva faz; o que, é claro, faz com que a ideia da série se enfraqueça. Por mais da metade da temporada, a “morte” de Erika não tem nenhuma relevância. Tudo que acontece com ela (sua evolução de oprimida para opressora) poderia continuar acontecendo, sobretudo, porque, antes do acidente ela já havia demonstrado ser capaz de reverter a própria imagem na escola.

Contudo, o maior problema está na tal “grande virada”, quando é revelado que de fato o cadáver debaixo do alce é de Gia e não de Erika. Para conseguir justificar essa decisão, o texto da série faz um imenso contorcionismo, ignorando – de propósito – qualquer possibilidade de sentido. Erika passou semanas falando com Gia pelos corredores da escola e apesar de todo mundo tê-la visto falando com alguém invisível, isso nunca foi mencionado pelos outros personagens ou causou estranheza nos responsáveis da escola. Isso sem falar no fato de que Gia passou um mês morta, desaparecida; e ninguém deu falta dela. Não há nenhum interesse em explicar como uma menina como ela passa esse tempo todo desaparecida sem que ninguém, nem seus familiares, a procurem. É absolutamente ridículo.

Em torno desse enredo esdrúxulo há tempo para boas piadas e tiradas sagazes de cultura pop. No entanto, é impossível não se perguntar por que raios os “assuntos pendentes” daquelas meninas tinham sempre a ver com meninos, beijos, posição social, baile... É como se a vida delas só girasse em torno de trivialidades superficiais, coisas que estão longe da profundidade necessária para justificar tempo a mais como fantasma na terra. Tanto Zoe quanto Lana estão dedicadas e se jogam naquela realidade mal engendrada com toda força, mas absolutamente todos os coadjuvantes são desperdiçados, o que faz com que elas também se saturem enquanto interlocutoras uma da outra. No final das contas pouco importa se elas conseguirão resolver seus problemas.

Boo, Bitch acaba, enfim, fechando seus pequenos 8 episódios com uma metáfora para transformações que passa com dificuldade pela ruela da verossimilhança (e verossimilhança é importante, sobretudo, para narrativas fantásticas). Aparentemente, nem a morte tira algumas histórias do terreno do tédio. 

Nota do Crítico
Regular