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Séries e TV

Crítica

Amor e Sorte

Antologia de quatro episódios, feita toda remotamente, poetiza o isolamento social

01.10.2020, às 10H54.
Atualizada em 01.10.2020, ÀS 11H12

Grandes transformações sociais são um tema recorrente na dramaturgia do planeta. Guerras, tragédias, viradas políticas, crises... Tudo acaba sempre sendo registrado pela arte e os realizadores dessas obras podem tomar dois caminhos: eles podem recontar o trauma com detalhes realistas (como em A Lista de Schindler) ou podem jogar sobre tais feridas um olhar lúdico (como em Jojo Rabbit). A pandemia que estamos vivendo desde o início de 2020 já começou a se refletir na produção ficcional. Em outubro veremos Sob Pressão escolher o completo realismo. Antes, Amor e Sorte veio para tratar o isolamento com notas romantizadas.

A antologia criada por Jorge Furtado teve apenas quatro episódios, idealizados e planejados de acordo com os atores disponíveis. Furtado foi atrás de quem estivesse em quarentena, priorizando casais, para assim flexibilizar as histórias indo do estranhamento da obrigação de conviver ao cansaço dessa convivência forçada. Os episódios têm autores e diretores diferentes, mas tudo passa pelo crivo de Furtado e também de Andrucha Waddington e Patrícia Pedrosa, que funcionam como referência para a direção artística. Além disso, foram os próprios atores que fizeram todo o trabalho técnico, desde a maquiagem à operação das câmeras.

As histórias foram distribuídas de acordo com os períodos da trajetória de um casal quando ele está preso numa situação como essa. Contudo, a de Gilda e Lúcia (Fernanda Montenegro e Fernanda Torres) gira em torno da relação entre mãe e filha. A trama havia sido planejada para ser a última a ser exibida, mas acabou indo ao ar primeiro. Assim, logo em seguida, os episódios respeitaram uma ordem calculada. “Linha de Raciocínio”, escrito por Alexandre Machado, mostrava o casal formado por Lázaro Ramos e Taís Araújo vivendo a rotina da pandemia, buscando o humor para lidar com o excesso de intimidade. Depois, “Territórios”, de Jô Abdu e Adriana Falcão, se passava num ponto em que o isolamento encontrava o romance vivido por Emílio Dantas e Fabiúla Nascimento; romance este que estava cada dia mais perto de acabar. Por fim, “A Beleza Salvará o Mundo” voltava ao começo, com Caio Blat e Luisa Arraes vivendo pessoas que se conheceram logo no início da crise. O roteiro desse último episódio, inclusive, foi escrito por eles.


Amor, Sorte e Superfície

De imediato, a série foi divulgada e prometida como um produto que chegava se impondo muito mais como um tópico de bastidores que como dramaturgia em si. É claro que estamos falando de roteiro, de atuação, de direção... Mas, Amor e Sorte “virou assunto” mais por como iria contar suas histórias do que pelo que essas histórias tinham a dizer. Toda a maneira especial com a qual a série tinha sido produzida chegou na frente de qualquer aspecto artístico, o que se confirmou na estreia, quando a abertura, as vinhetas de intervalo e até os encerramentos mostravam vídeos dos bastidores, causando um certo ruído na sensibilização do resultado.

Essas antologias episódicas não são tão incomuns assim. Recentemente, Modern Love mostrou lá no Amazon Prime Video, que contar histórias isoladas sobre um tema em comum pode ter efeitos catárticos tão poderosos quanto qualquer série completa. Talvez, o tempo aqui também seja um fator determinante. O episódio mais longo de Amor e Sorte, o das Fernandas, tem 44 minutos de duração e isso acaba contribuindo para uma sensação de que a trama está fluindo com mais naturalidade. O seguinte, com Lázaro e Taís, se apoia no texto rápido de Alexandre Machado, o que acaba justificando os 20 minutos em que se transcorre a ação. Porém, ainda que haja humor nos episódios que seguem o primeiro, os roteiros acabam esbarrando em uma questão inevitável: superficialidade.

O episódio de Lázaro e Taís tem o DNA de seu autor. Alexandre e Fernanda Young criaram Os Normais e diálogos entre homem e mulher eram a especialidade deles. Porém, de certa forma, o texto esperto e às vezes vulgar de Alexandre luta contra a atmosfera de perfeição da casa ampla e absurdamente organizada do casal. É claro que há uma crítica à classe média pasteurizada, preocupada em bater panelas. Mas, algo parece estranhamente deslocado, incapaz de estabelecer se aquela é realmente uma crítica ou uma afirmação. Já no episódio seguinte, o casal boêmio vivido por Emílio e Fabíula consegue estruturar melhor sua dramaturgia, dando razões concretas para a própria crise e trabalhando com coerência o reencontro. Roteiro e direção usam melhor o próprio tempo.

A escolha de deixar que a história escrita por Caio e Luisa encerrasse a temporada também esvaziou o impacto da série. O episódio é o mais lúdico, mais descolado da realidade, mais avesso ao que o isolamento e a pandemia realmente representam. Essa foi uma escolha calculada, isso é evidente. Porém, apesar do texto ser inteligente e da boa sacada de usá-lo para fazer uma pequena conexão entre as histórias, o enfraquecimento de tensões emocionais verossímeis não funcionou como deveria, tornando o episódio desimportante, tecnicamente vaidoso, mas carente do recurso do afeto e do envolvimento.

É claro que diante de um cenário pandêmico tão horrível, o raciocínio otimista na hora de construir um enredo é correto e justificável. Esse é um caminho que Amor e Sorte escolhe para si e que faz com que nosso olhar sobre a temporada precise levar esse contexto em consideração. Como obra de escape, funciona muito bem. A pandemia é a última coisa na qual você vai pensar assistindo. Contudo, seja pelo excesso de atenção aos bastidores ou pela falta de tempo para desenvolver as tramas, o investimento em poetizar o isolamento fez com que o produto escapasse da substância narrativa. Esse não é um pecado, é uma escolha; o que não deixa de ser curioso... Para se aliviar dos terrores de viver isolado, assista a uma série que usa o isolamento para não falar dele.

Nota do Crítico
Bom