O primeiro e o último episódios da temporada de estreia de Além do Guarda-Roupa dedicam pouquíssimo tempo de tela para o lado sul-coreano da trama. Ao invés disso, acompanhamos Carol (Sharon Cho) no início e no fim de sua busca por uma bolsa de estudos de balé, a difícil transição do relacionamento de Nayara (Sabrina Nonata) da internet para a vida real, o arco de saída do armário de Diguinho (Lucas Deluti), a ressignificação da relação mãe-e-filha de Regina (Júlia Rabello) e Luísa (Julia Bach)... enfim, histórias brasileiras que a série construiu cuidadosamente, trabalhando duro para manter a complexidade dos seus personagens à vista e conduzi-los ao momento em que toda essa preparação dramática pode gerar recompensa emocional para o espectador.
O ponto aqui não é que a trama brasileira de Além do Guarda-Roupa seja mais legítima, dramaticamente, do que a trama sul-coreana. Não é, em nenhum sentido mensurável. Ao contar a história do portal que se abre no guarda-roupa de Carol, dando para o dormitório do trio de k-pop ACT, um dos mais populares do planeta, a série se engaja com a tradição dramatúrgica da Coreia do Sul sem nem sombra do escárnio que marca tantas análises críticas do “fenômeno coreano” que se leem por aí. Pelo contrário: as convenções novelescas dos k-dramas, com seus romances idealizados e sua dedicação irrestrita ao female gaze, são tratadas apenas com carinho, seja no subtexto ou no texto da série.
“Quando duas pessoas que se gostam se encontram, tudo fica em câmera lenta”, diz a mãe de Diguinho, aficcionada por k-dramas, em uma cena do excelente episódio “Churrasco na Laje” (1x05). Mostrar os personagens brasileiros se engajando de diferentes formas com a arte sul-coreana é a maneira que Além do Guarda Roupa encontra de fazer o seu manifesto artístico de apreciação por e colaboração entre universos geograficamente distantes, mas unidos por um sentimento de humanidade pulsante, até exacerbado. Aquele amor de câmera lenta existe mesmo ou é só ilusão, só enganação da indústria para vender novela? A série da HBO Max acerta ao responder que não é tão simples assim: a fantasia pode muito bem ser um acessório, um instrumento valioso para lidar com a realidade.
O que Além do Guarda-Roupa também entende, crucialmente, é que a fundação de suas histórias, e as conexões temáticas mais fortes entre elas, estão em São Paulo, não em Seul. É aqui que os abandonos parentais de Carol e Kyung (Kim Woojin) se interligam com os abusos e pressões que a protagonista sofre nas mãos da tia Regina, e que Diguinho sofre na relação com seu próprio pai. Com adultos perdidos nos seus próprios dilemas autocentrados, o que os jovens que dependem deles para definir o seu próprio valor são levados a fazer? Além do Guarda-Roupa dá espaço para cada um de seus personagens ser mais do que só um arquétipo de vilão ou herói, e advoga pela autodeterminação diante desse descaso parental, mas não foge da fundamental falha moral que ele representa.
Um dos trabalhos mais importantes de qualquer escritor, em qualquer mídia, é olhar para a própria história e entender, até com um pouco de distância afetiva, onde estão as prioridades dela - ou seja: onde os nós narrativos atados pela trama se apertam, onde estão as performances que carregam o público para dentro dessa história (e, mesmo em um elenco sem qualquer elo realmente fraco, a protagonista Sharon Cho se destaca como presença imediatamente cativante). No caso dessa produção em específico, ainda, é importante enxergar onde moram os momentos de verdade que autorizam a fantasia e elevam a “novelinha” para o patamar de expressão dramática fundamental da humanidade.
Acima de qualquer coisa, enfim, o triunfo de Além do Guarda-Roupa está na visão cristalina que tem de tudo isso sobre si mesma, e na determinação ferrenha que demonstra em honrar o que está vendo.