Séries e TV

A novela Travessia é sobre o que mesmo?

Glória Perez consagrou seu nome em argumentos que nunca se perderam, o que torna seu trabalho em Travessia um choque ainda maior.

27.12.2022, às 12H26.
Atualizada em 27.12.2022, ÀS 12H41

Quando Travessia estava para estrear no horário nobre, estive em ao menos 2 entrevistas online com Glória Perez. Em ambas, ela explicou que o conceito por trás do nome “Travessia” era uma alusão à longa e difícil viagem que Brisa faria do Maranhão para o Rio de Janeiro, em busca de provar a própria inocência. Brisa (Lucy Alves) seria acusada de sequestrar crianças depois de ser vítima de uma deep fake, quando seu rosto seria digitalmente colocado sob o rosto da verdadeira criminosa. Esse era o argumento básico da novela... e sabemos que, por uma questão de trajetória, Glória entende muito bem o que é isso.

A autora estreou na TV em 1983, sendo colaboradora de Janete Clair em Eu Prometo. Depois, dividiu a autoria de Partido Alto com Aguinaldo Silva. Em ambas ela acabou terminando de escrever sozinha (Janete faleceu antes do fim de Eu Prometo, e Aguinaldo se retirou de Partido Alto por divergências criativas). Contudo, a Globo recusou a sinopse de Barriga de Aluguel em meados dos anos 80, levando Glória a buscar novos horizontes. Ela foi parar na Manchete, onde escreveu sua primeira novela solo, a controversa Carmem.

Carmem hoje em dia seria inviável, provavelmente. Na trama, uma mulher vivida por Lucélia Santos fazia o seguinte pacto com uma pombagira: em troca do corpo de Carmem, a entidade lhe daria todo o poder e dinheiro que ela quisesse; desde que Carmem não se apaixonasse. Então, a protagonista conquistava seus objetivos e se vingava de seu algoz enquanto incorporava frequentemente a pombagira do pacto. Quando Carmem, enfim, se apaixonava, a entidade se voltava contra ela e destruía sua vida. Mesmo tendo apenas 8 anos na época, nunca esqueci como eram chocantes as sequências de incorporação.

Em 1990, Glória voltou para a Globo, que finalmente aceitou produzir Barriga de Aluguel. Foi um sucesso estrondoso. Na trama, um casal rico com dificuldades para conceber, contratava uma jovem pobre e ambiciosa para inseminação artificial. Clara (Claudia Abreu) engravidava do bebê de Ana (Cássia Kis) e o conflito se formava logo depois: embora o feto não tivesse nenhum material genético da mulher que o carregava, ela se sentia mãe da criança. Clara passava a novela fugindo, brigando para ficar com o bebê; enquanto Ana tentava provar na justiça que apesar de não ter gerado a criança, ela era sua mãe. Em nenhum momento esse argumento foi perdido de vista.

Dois anos depois, em 1992, estreava De Corpo e Alma. Nessa novela, o foco era ético novamente. Betina (Bruna Lombardi) morria num acidente de carro e seu coração era transplantado para Paloma (Cristiana Oliveira). Quando Diogo (Tarcísio Meira) - o amado de Betina - descobria que o coração dela estava em outra pessoa, ele procurava por Paloma, se apaixonando por ela. O conflito da protagonista era lidar com a possibilidade de que aquele homem não a amava por quem ela era e sim pelo coração que ela carregava. De Corpo e Alma não foi um trabalho dos melhores de Glória, mas logo depois do capítulo 100 sua filha Daniella foi assassinada pelo parceiro de cena, fazendo com que a obra como um todo perdesse qualquer brilho.

A autora voltou a escrever novelas em 1995. Explode Coração era bem mais curta e foi a primeira da “série de choques culturais”. Nessa novela, uma cigana se comunicava com um homem pela infante internet, apaixonando-se por ele. Seus mundos eram completamente diferentes e esse argumento perseguiu Glória nos anos seguintes. O apogeu veio em O Clone (2001), mas foi reprisado em Caminho das Índias (2009), Salve Jorge (2012) e até em A Força do Querer (2017), mesmo que em escalas menores. Em A Força do Querer, inclusive, todos os personagens traziam consigo o título da novela. Todos queriam muito alguma coisa e moviam céus e terras para isso.

Seja na clonagem humana, no tráfico de pessoas, no sonho americano ou na transição de adequação de gênero, as tramas dessas novelas não perdiam o rastro de seus próprios princípios. Ainda que houvesse uma quantidade grande de desvios, as protagonistas retornavam ao nó dramático primordial: um clone é mesmo um ser humano como os outros? Como combater o tráfico de pessoas? Vale tudo para viver o sonho da imigração? Existe um limite para alcançar aquilo que tanto se quer? Boas histórias só se sustentam quando suas bases não se diluem com o tempo.

Travessia para onde?

Até essa coluna ser feita, Travessia estava entrando na casa dos 60 capítulos. A deep fake que colocou Brisa na cadeia ficou para trás bem antes disso. Essa “montagem”, inclusive, foi feita por uma criança, eximindo Glória de fazer qualquer aprofundamento em engrenagens realmente relevantes para o momento vigente do Brasil. Na segunda vez que a criança faz a montagem, o texto ameniza os efeitos e responsabilidades apelando para um certo humor. Enquanto o país se debate com os efeitos devastadores das notícias falsas, Glória superficializa o movimento, usando a ideia como ganchinho midiático e não entregando nenhuma substância no assunto.

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A tal “travessia” do título tampouco se traduz nos capítulos. A viagem de Brisa durou uma semana e ela já está estabelecida em Vila Isabel. A personagem não fala em “provar inocência” há milênios e atualmente toda sua trajetória se resume a brigar com o ex-marido pela guarda do filho deles. A novela não é sobre fake news, não é sobre choques culturais, não é sobre atravessar nada a não ser a nossa paciência. Brisa poderia ter vindo de qualquer lugar, poderia nem ter vindo de lugar algum... Pouco em sua história reverbera seriamente em seu presente.

Glória já foi acusada antes de exigir que o público “voe” mais; mas dessa vez a exigência parece ter chegado ao limite. Para conseguir contar a história que queria, com Brisa indo para o Rio e demorando até reencontrar o filho e o marido, todo tipo de negação esdrúxula foi feita. A novela menciona metaverso, realidades virtuais, artimanhas digitais... Mas, não resolve o óbvio: como uma pessoa hoje em dia ficaria tanto tempo sem entrar em contato com os seus só porque “não lembra o telefone”? Ao invés de pensar numa forma inteligente para justificar Brisa não reencontrar rápido o marido, Glória lançou mão de um “acredite se quiser” e enfiou a protagonista num pântano de absurdos que poderiam ser resolvidos com um direct.

Essa falta de identidade se refletiu em Travessia desde seu primeiro pico de divulgação. Embora Brisa fosse a protagonista, a promoção toda da novela foi apoiada em Jade Picon. O primeiro capítulo foi todo sobre o nascimento da personagem de Jade Picon. Por vários e vários capítulos, Jade Picon foi o centro de todas as atenções. Agora, 60 capítulos depois, a presença de Chiara (personagem de Jade) foi reduzida a cinzas, o que também reflete um planejamento frágil. Inexperiente, Jade não podia segurar esse peso. Junte isso ao fato de que o carisma é inexistente em quase todo o núcleo principal, salvando-se o trabalho esmerado de Rômulo Estrela para preservar a simpatia de Otto. Lucy Alves é uma atriz muito mais interessante que tudo que Brisa pode oferecê-la.

Por capítulos e capítulos, absolutamente nada acontece. Glória parece fascinada pela ideia do vilão Moretti (Rodrigo Lombardi), mas ele pouco movimenta as coisas. A trama da guarda do filho é como comida requentada, o “mistério das fake news” está translúcido e é difícil até explicar do que Travessia se trata. Ela pincelou coisas, não aprofundou nada e no momento os conflitos se baseiam em audiências jurídicas. Aquela Glória textualmente hiper-preparada de A Força do Querer desapareceu e deu lugar a uma Glória que entuba uma Vila Isabel pasteurizada, uma burrice indesculpável na forma como sua protagonista age e uma diluição de tensões que faz da história um eficiente sonífero. Se no passado Glória abordava questões éticas e sociais com ousadia e polêmica, Travessia agora soa como um produto genérico.

Na noite de Natal o recorde de baixa audiência foi batido: 15 pontos. A única travessia feita aqui foi Glória quem fez. A travessia para a grande realidade de que o público não voa mais às cegas.

Está definido...

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... que Flávia Reis precisa de mais espaço na TV. Brisa e Marineide (personagem de Flávia) crescem em cena e Flávia é uma das poucas que tira ternura de suas sequências. Giovanna Antonelli também se esforça muito. Giovanna é o tipo de atriz que tem aquela inflexão salvadora. Sem isso, o que seria de Helô? Até agora a personagem não fez nada de relevante e nem que justificasse seu deslocamento de Salve Jorge para cá.

Está a definir...

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... o tamanho do estrago do que tem acontecido nos bastidores por causa dos posicionamentos políticos de Cassia Kis. Glória, aliás, chegou a responder críticas debochando de internautas que seriam possivelmente progressistas. Com isso, aumenta a possibilidade de termos uma trama em que o “show” está longe da tela. O pior lugar para se estar enquanto obra televisiva.