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Revista <i>Kaos!</i> - Uma proposta ousada para os quadrinhos nacionais

Revista <i>Kaos!</i> - Uma proposta ousada para os quadrinhos nacionais

23.03.2005, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H17

Todos já estamos acostumados com revistas de histórias em quadrinhos nacionais que soçobram após o primeiro número. Muitas vezes, apesar do entusiasmo de autores e editores, da boa acolhida da crítica e até da qualidade do material publicado, o mais comum de acontecer é que os novos títulos de quadrinhos elaborados no Brasil não passem de seu primeiro, ainda que (às vezes) aplaudido número. Os exemplos recentes são abundantes nesse sentido, desde histórias que buscaram o público adulto mais exigente a publicações em estilo mangá, que tentaram aproveitar o acirrado interesse por esse tipo de HQs no país.

Os motivos para esses fracassos são inúmeros, envolvendo desde a dificuldade de distribuição desses novos títulos, que nem sempre recebem acolhida favorável por parte dos comerciantes tradicionais, os donos de bancas de jornal, as dificuldades econômicas e financeiras dos organizadores das publicações e o próprio desinteresse do grande público leitor, excessivamente arraigado a suas tradicionais preferências de consumo na área, em geral restrita a publicações de origem estrangeira.

Independente das razões que podem levar uma revista a fracassar logo em sua estréia, no entanto, é sempre muito satisfatório e alvissareiro saber que alguns lançamentos conseguem fugir dessa triste sina. Felizmente, foi isto o que ocorreu com uma das últimas publicações disponibilizadas ao mercado brasileiro no ano passado, a revista Kaos, cujo segundo número foi recentemente apresentado ao público durante o último Fest Comix, feira de venda de quadrinhos realizada em 10 de março, em São Paulo.

Trata-se do sobrepujar de uma primeira barreira. Não quer isto dizer que o sucesso esteja totalmente assegurado. Absolutamente. A publicação de quadrinhos no Brasil é uma luta diária, conquistada a cada número colocado em bancas. No caso da Kaos, é indiscutível que ainda existem muitas dificuldades a serem superadas para garantia de sua perenidade. A primeira delas diz respeito à própria periodicidade da revista, que não está bem clara para o leitor em qualquer dos dois números publicados. Entre o primeiro e o segundo número transcorreram quase cinco meses, o que é um prazo bem longo para os que se apegaram ao título e pretendem continuar a lê-lo. Além disso, em nenhum lugar do gibi, aparece a informação sobre qualquer tipo de periodicidade e somente aqueles suficientemente interessados para visitar a página na internet (www.revistakaos.com.br), elaborada para divulgação da revista, encontrarão uma menção a isso logo na abertura: três edições bimestrais. Assim, instala-se um paradoxo interessante, com a revista se propondo, no site, como uma espécie de minissérie, mas, no entanto, não apresentando um conteúdo que se caracterize como tal. Uma questão a ser esclarecida quando o terceiro número for lançado, provavelmente.

O imprevisível e o caos mental

Com o conteúdo totalmente em preto e branco, a revista Kaos pode ser caracterizada como uma coletânea de histórias em quadrinhos que tratam de temas diversos, embora tendo em comum uma proposta temática voltada para o público adulto, abordando aspectos inusitados da sociedade e mergulhando em novas tessituras quadrinhísticas. Desta forma, ela se coloca imediatamente como uma publicação que não busca fins modestos. Quer desestruturar o existente, apresentando uma nova proposta de ordem (ou de desordem), que explora o imprevisível e foge dos padrões aos quais o leitor está acostumado. Suas histórias não trazem fins esperados - às vezes, nem sequer trazem a palavra fim quando terminam... -, e fogem do convencional, seja em termos do desenho, da narrativa e da linguagem utilizada pelas personagens. Chocam por sua ousadia, quebrando as expectativas e gerando - como o próprio nome parece sugerir -, uma espécie de caos mental no leitor.

Nesse aspecto, coragem é algo que não parece faltar a seus idealizadores. O que é muito bom em termos de renovação de um mercado em que sempre foi muito mais garantido se prender ao costumeiro, mas que pode também se constituir em uma aposta suicida para os seus idealizadores. O aparecimento do segundo número mostrou que não era tão suicida assim, pelo menos...

Lobo em pele de cordeiro

Nos dois números da revista, vários autores se sucedem ou se repetem apresentando narrativas que caminham por trilhas nem sempre muito movimentada por estas paragens.

Na busca de fincar suas raízes e criar um produto familiar ao leitor, os editores estabeleceram um design atrativo para a capa da publicação, em que prevalecem a cor amarela para o fundo e chamadas em cor branca para as principais atrações, num excelente trabalho de colorização realizado por Rodrigo Reis, em ilustração de Sandro Castelli. No lado esquerdo da capa, na vertical, uma espécie de sumário do conteúdo, acompanhando o modelo das revistas de linha Marvel atualmente publicadas no país. Se o conteúdo da revista é inovador, o objetivo de atrair a atenção do leitor para ele foi abordado de forma mais convencional, preferindo se manter apegado a fórmulas que já se mostraram bem eficientes. Uma escolha no mínimo prudente, sinalizando para um conhecimento do mercado consumidor brasileiro e de suas características.

Produção equilibrada

Da equipe de criadores, Roger Cruz é o autor mais conhecido do grande público; ele comparece no primeiro número, com uma história sobre duas sensuais mercenárias do futuro que se disfarçam para realizar uma missão. São personagens interessantes, em uma narrativa bem humorada, que certamente mereceria uma continuação. Os demais autores são todos nomes que circulam em um âmbito mais restrito, nem todos familiares ao leitor comum. Na ilustração, os trabalhos de Caio Majado, Sandro Castelli, Anderson Cabral, Júlia Bax e Sam Hart são bastante eficientes para os roteiros elaborados por Jean Canesqui, Luiz Pereira, André Valente e Sam Hart (este último, o único que ilustra seu próprio roteiro, utilizando um traço bem próximo ao de autores como o mineiro Mozart Couto e conseguindo com isso criar um clima de suspense em sua narrativa). Num trabalho cooperativo, eles são bem sucedidos em produzir um material com bastante equilíbrio, dosando linhas gráficas e estilos narrativos.

Os destaques, nos dois números, parecem ficar para a linha clara de Júlia Bax, graficamente muito próxima de Terry Moore e sua obra Estranhos no paraíso, e os tons acinzentados de Anderson Cabral, nas duas histórias que ilustrou para uma personagem de Jean Canesqui.

Familiarizar o leitor

A revista Kaos optou por uma alternativa editorial que pode lhe trazer bons frutos no futuro. A par de histórias fechadas em si mesmas, presentes nos dois números já publicados da revista, também surgem neles narrativas que têm o mesmo protagonista, evidenciando a intenção de gerar uma familiaridade no leitor. É o que acontece com os dois episódios de Meninos perdidos, de Luiz Pereira e André Valente, em que são abordadas as vicissitudes de um grupo de garotos em um mundo apocalíptico, e com os de O homem que tudo vê, de Jean Canesqui, que aborda as aventuras de um indivíduo que teve seus globos oculares transformados em câmeras de canais televisão em permanente exibição. De forma um pouco diversa, essa busca de criação de uma ligação com o leitor também vai surgir nas narrativas elaboradas por Sam Hart, que cria a continuidade não pelas personagens, mas pelo título da história, A de Aluguel, com o A se transformando em objetos diferentes nos dois números da revista (Arma, no primeiro episódio, e Arte, no segundo).

Completa-se o conteúdo da revista entrevistas com autores conhecidos, nacionais e estrangeiros, como Marcelo Cassaro e Alan Moore no primeiro número, e Lourenço Mutarelli e David Lloyd no segundo. Outro aspecto interessante a ser destacado é a inserção de páginas contendo ilustrações de artistas especialmente convidados, denominadas pelos editores de Pin-ups. Entre os que aceitaram o convite, nomes como Octavio Cariello, Roko, Natan Herbert, Greg Tocchini, André Freitas, Jimie Anne Pak e Felipe Sobreiro engrandecem a revista, deixando-a ainda mais interessante.

Um bom começo

O resultado destes dois números da revista Kaos é positivo. No entanto, tendo em vista as dificuldades mencionadas, pode ser cedo para cantar vitória. Afinal, ainda que de grande qualidade, foram apenas dois números publicados. Isto é só o começo. O caminho está recém-iniciando para ela e seus idealizadores. Tudo indica que se trata de um bom começo, é certo, digno de uma extensa linhagem. Mas é, ainda assim, um começo. No momento, resta torcer para que o bom nível desses dois números se mantenha em lançamentos futuros e que muitas histórias com o mesmo espírito que norteou os dois primeiros números da revista possam ser disponibilizadas ao público brasileiro.

A revista Kaos é publicada pela Editora Manticora, em preto e branco, e custa R$ 7.50.