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Lá Fora Especial

Conheça a First Second Books

07.08.2006, às 00H00.
Atualizada em 23.11.2016, ÀS 07H08

O mercado livreiro norte-americano descobriu os quadrinhos. Ou melhor, as graphic novels - se você for falar com alguma editora grande, só pode usar o termo pomposo. Casas estabelecidas no mercado, como Houghton-Mifflin e Random House, perceberam o novo status cult das GNs e começaram a investir em obras tanto de quadrinhistas estabelecidos quanto de novatos. Isto teve reflexos no Brasil, com editoras como Companhia das Letras e Jorge Zahar publicando mais álbuns de quadrinhos.

A First Second Books foi criada em 2005 como a linha de graphic novels da Roaring Brook Press (por sua vez uma divisão da Henry Holt; por sua vez propriedade do gigante grupo alemão Georg von Holtzbrinck). Comandada pelo editor Mark Siegel (também quadrinhista), a First Second tem uma proposta diferenciada: lançar material novo de autores norte-americanos, sim, mas também trazer para os EUA os álbuns mais comentados na Europa e em outras partes do mundo.

Os livros saem às fornadas. Para lançar-se no mercado, a linha colocou seis álbuns nas prateleiras. Outros seis devem sair em setembro; haverá mais seis no início de 2007, e assim por diante. O formato também é diferente: 21,6 x 15,5 cm, um pouco maior que o formatinho brasileiro, e estranho aos padrões norte-americanos e europeus. O motivo: baixar os preços. Por decisão editorial, todos os álbuns custarão menos de 20 dólares. Papel couché grosso é o máximo de luxo que você vai ver. O objetivo não é criar peças de colecionador, e sim publicar a maior quantidade de quadrinhos de qualidade a um preço bom.

O Omelete conferiu quatro lançamentos da primeira fornada, bastante heterogênea, da First Second.

THE FATE OF THE ARTIST

Quem leu Do Inferno está familiarizado com o nome Eddie Campbell, colaborador de Alan Moore. Mas a maior parte dos leitores da obra sobre Jack, o Estripador não conhece o resto da produção de Campbell, cujo destaque são quadrinhos experimentais autobiográficos com pretensões filosóficas sobre a vida artística e o sentido da arte. O autor inglês - radicado na Austrália - tem até um alter ego, Alec, que usa em algumas obras para disfarçar sua autobiografia.

The Fate of the Artist não estrela Alec, mas sim o próprio Campbell. Ou melhor, a família dele, pois o volume começa com o autor desaparecido. Suspeita-se de assassinato, e uma investigação se inicia. Os personagens, porém, não parecem muito preocupados em encontrar o culpado - pelo jeito, todo mundo tinha um pouco de vontade de matar Campbell por causa de suas manias.

Misturando desenho, pintura, fotografia, texto e algumas seqüências em tiras de jornal, o livro mostra a investigação, na qual são contadas histórias da vida de Campbell, com destaque para suas excentricidades e gênio imprevisível. Sua filha adolescente, Hailey, é quem conta a maioria das histórias, numa entrevista fotográfica. A resolução do caso segue o espírito inusitado do livro.

A proposta de Campbell, aparentemente, era transformar sua excentricidade - a impulsividade, a falta de atenção, as paixões passageiras - em estilo narrativo. Pelas histórias que o livro conta, o exercício deu certo. The Fate of the Artist vale por ver por o autor, ou o artista, esforçando-se para alcançar algo novo. Não é algo revolucionário ou arrebatador, mas é bem interessante acompanhar este exercício.

VAMPIRE LOVES

Joann Sfar já é conhecido no Brasil por dois álbuns lançados pela Jorge Zahar: o infantil Pequeno Vampiro Vai à Escola e o elogiadíssimo O Gato do Rabino. Na França, Sfar é conhecido por sua produtividade assombrosa: 100 álbuns desde o início dos anos 90. Num país em que os autores contentam-se com uma obra por ano, ele é uma anomalia.

Vampire Loves estrela a versão adulta do Pequeno Vampiro. O volume reúne os quatro primeiros álbuns franceses do personagem, um vampiro à la Peter Parker - extremamente camarada, com certa vergonha de seu vício no sangue (ele morde as vítimas com apenas um dente, para acharem que foi um mosquito) e azarado no amor.

Quem já leu um álbum de Sfar sabe que o autor mantém um estilo narrativo bem próprio: a história desenvolve-se de forma extremamente simples, como se a trama se montasse a partir dos porquês de uma criança. Há algo de infantil também na criatividade do autor, que lança personagens e situações sem deixar que a lógica domine o rumo.

As desilusões amorosas do Vampiro são tema do álbum. Você vai encontrar personagens - todos monstros, assombrações, fantasmas etc. - que refletem pessoas que já conheceu nas suas próprias desilusões. Através do Vampiro, vemos o amadurecimento amoroso da juventude à idade adulta de um jeito com o qual qualquer pessoa que já passou por isto pode identificar-se. E se ver representado ali através de algumas metáforas visuais é o ponto alto da obra.

DEOGRATIAS: A TALE OF RWANDA

Mudando o tom - e a proposta da First Second é a variedade de temas -, Deogratias tem uma mensagem política: sobre o massacre da minoria étnica hutsi pela maioria hutu na Ruanda, em 1994. Uma guerra civil com 800 mil mortos, à qual o mundo não deu atenção.

Se Hotel Ruanda, o filme de 2005, provocou audiências mundiais com seu dedo acusador, em Deogratias J.P. Stassen quer que você sinta no peito o terror da guerra civil. Começamos alguns dias antes do conflito, e o adolescente que dá título ao álbum é o ponto a partir do qual vemos várias tensões prestes a estourar.

Stassen - o autor belga hoje reside no país africano - conduz o roteiro como um suspense refinado. Você sabe que a tranqüilidade e os pequenos problemas de Deogratias e seus amigos vão virar banalidade, pois há um massacre pronto para eclodir. E quando a guerra começa, o terror acontece fora dos quadros - você sabe que as milícias hutus estão matando mil tutsis por dia, geralmente a golpes de machete, mas só temos vislumbres dos facões ensangüentados. Você sabe o que está acontecendo, mas essa invisibilidade dos fatos só aumenta o nervosismo.

Deogratias é, assim, uma obra nervosa, tensa, na qual você sente o terror de um país em puro caos, e os reflexos da guerra na geração que deveria desenvolver a nação. Se você acha que a humanidade vale a pena, é melhor não ler.

A.L.I.E.E.N.

Mais um álbum francês, e de outro autor prolífico: Lewis Trondheim. Ou melhor, apresentado por Trondheim. Ele afirma, na introdução, que encontrou o gibi jogado na floresta enquanto acampava. Olhei para as marcas no solo - e não há dúvida de que a grama chamuscada formava um círculo perfeito. Outras miudezas deixadas para trás certamente não tinham sido produzidas no local, nem neste país, nem mesmo na Terra (...) Parece ser a primeira HQ para crianças extraterrestres já publicada no nosso planeta.

Nas páginas seguintes, temos uma história em que pequenos monstrinhos, de formas variadas, participam de uma trama vagamente compreensível, na qual conversam em um idioma de alfabeto completamente desconhecido e passam por situações que podem ou não ter relação com as emoções conhecidas de nós, terráqueos.

Este mundo alienígena às vezes parece ser cruel, às vezes parece hilário, às vezes soa totalmente nonsense - mas não temos como decodificar perfeitamente as sensações extraterrestres que o autor alienígena quis colocar na sua trama.

Nunca a expressão foi tão apropriada: A.L.I.E.E.N. é diferente de tudo que você já viu nesse mundo.

PRÓXIMOS LANÇAMENTOS

Em setembro, a First Second lança nos EUA mais material variado: a ficção histórica Journey Into Mohawk Country, os autobiográficos Missouri Boy, American Born Chinese (este já bastante comentado) e Kampung Boy (já saiu no Brasil, pela Conrad, como O Menino de Kampung) e mais Joann Sfar - Sardine in Outer Space II e Klezmer.

É um catálogo de dar inveja a qualquer editora do planeta. O Omelete só espera que essa inveja faça alguma editora brasileira se mexer e investir em obras que mostrem como o universo de quadrinhos é bem mais amplo e diverso do que conhecemos aqui. Começar por essas sugestões globalizadas da editora norte-americana seria a melhor pedida.














































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