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<i>Dark Angel</i>: Semideuses míticos em mangá de qualidade

<i>Dark Angel</i>: Semideuses míticos em mangá de qualidade

SM
10.06.2003, às 00H00.
Atualizada em 15.11.2016, ÀS 08H01

O que semideuses míticos lutando furiosamente por sua honra e meninas graciosas que se movimentam por um mundo virtual dentro dos computadores têm em comum? O fato de ambos terem surgido pelas mãos de Kia Asamiya, um dos mais versáteis desenhistas de mangá da atualidade.

No caso das meninas do mundo virtual, trata-se de Corrector Yui, animação que já foi exibida no Brasil pela TV a cabo, na verdade, uma série criada por encomenda para conquistar o público de Sakura Card Captors, da CLAMP. Já os guerreiros sobre-humanos são os personagens de Dark Angel, o mangá que está chegando ao público brasileiro pela Editora Mythos.

Asamiya tem em seu currículo várias séries de renome, como Silent Mobius, Nadesico, Batman Manga e a versão japonesa de Star wars. No meio de tantos sucessos, Dark Angel é com certeza um de seus trabalhos mais conhecidos no Ocidente, graças à sua história repleta de ação e aventura, mas que não dispensa um enredo envolvente e mais profundo do que a maioria das séries do gênero que circulam no Brasil. O mundo criado por Asamiya está recheado de mitos e lendas que aos poucos se tornam familiares aos brasileiros, graças ao contato e o interesse crescente com as culturas orientais como a da China e do Japão.

UM MUNDO E SEUS REINOS

A história de Dark Angel se passa em um mundo mítico, dividido em quatro países de acordo com os pontos cardeais e os animais sagrados chineses: há o Reino dos Ventos do Leste, que tem como símbolo o Dragão Azul, o Reino dos Ventos do Norte, sob a constelação da Ursa Maior, o Reino dos Ventos do Sul, sob a proteção da Fênix Escarlate e o Reino dos Ventos do Oeste, domínio do grande Tigre Branco. Há ainda o reino central de Oukaku, responsável pela manutenção da ordem entre as Nações do Quatro Ventos.

Cada um dos reinos é governado por um guerreiro possuidor de poderes extraordinários, que também é o guardião de seu país. Estes soberanos recebem o nome de fantasmas sagrados (gensei) e têm pequenos espíritos guardiões como seus conselheiros. Por força de um tratado firmado muito tempo atrás, nenhum deles pode entrar em um domínio que não seja o seu sem antes pedir a permissão do fantasma sagrado que o governa, e assim os quatro reinos vivem um tempo de paz.

O SUCESSOR

A história começa com Lorde Soh, fantasma sagrado da Fênix Escarlate, treinando seu jovem discípulo Dark junto a uma cachoeira. Por mais que se esforce, é óbvio que Dark ainda tem muito que aprender antes de atingir o nível de seu mestre. Porém, Lorde Soh tem pressa, pois pressente que sua vida está chegando ao fim, e desafia Dark a colocar todo o seu poder e habilidade em um golpe supremo, que decidirá se ele poderá continuar o treinamento ou não.

Após uma dura luta, Lorde Soh deliberadamente evita se defender e morre pelas mãos de Dark, pois essa seria a única maneira de nomeá-lo seu sucessor. Antes de morrer, o soberano entrega ao jovem sua espada mágica e diz que ele deve se apresentar como novo fantasma sagrado ao senhor do reino central, tendo como guia na viagem a pequena fada guardiã Kyoh.

A ESPADA CONFISCADA

No entanto, Dark não é realmente o que se espera de um herói e logo se perde, entrando por engano no Reino do Dragão Azul. Apenas isso já lhe custaria a vida, mas, entre os guerreiros que vão lhe barrar o caminho, está uma antiga aluna secreta de Lorde Soh, também sua amante. Louca de dor com a notícia da morte de Soh, ela inicia uma selvagem batalha com Dark, para a qual também chega a soberana do país, e que só acaba quando a espada mágica (que Dark até então sequer conseguia tirar da bainha) mostra todo o seu poder e o espírito de Lorde Soh revela-se como unido ao do rapaz.

Por haver infringido a lei suprema dos quatro reinos, Dark tem sua espada confiscada por um emissário do reino central, que lhe aconselha a retornar ao seu domínio e procurar um famoso mestre ferreiro para conseguir uma nova espada. Após várias tentativas, Dark e Kyoh encontram o mestre Kiba, que testa o coração do rapaz e lhe dá uma espada sem fio, com a qual ele poderá salvar vidas e não destruí-las, conforme o seu desejo (exatamente como um certo samurai de outra série...).

HERÓI OU DEMÔNIO?

Nesse meio tempo, no encalço de um criminoso, o soberano do Reino dos Ventos do Oeste invade o reino de Dark e chega à casa do mestre Kiba, desafiando a lei sagrada. Como soberano do reino da Fênix Escarlate, Dark precisa puni-lo, tendo início, então, uma feroz batalha. É aí que descobrimos que Dark tem sangue negro, como o dos demônios. Será Dark realmente um demônio? Por que, então, Lorde Soh lhe confiou a guarda do reino da Fênix Escarlate?

Essas e outras perguntas vão se esclarecer durante a saga do jovem Dark em meio aos relacionamentos e às intrigas dos guerreiros dos quatro mundos, sempre com muita ação em lutas empolgantes e bem desenhadas. O traço de Asamiya é relativamente leve para o gênero, mas se casa perfeitamente com as características de suas personagens, as quais não são excessivamente musculosos e usam antes suas habilidades em vez da força bruta durante suas lutas. Suas figuras são elegantes e expressivas, tanto facial quanto corporalmente, e o desenho sempre acentua a personalidade das personagens, em geral bem delineadas e bastante convincentes. O mesmo vale para os conflitos que se desenrolam entre elas.

A EDIÇÃO NACIONAL

A série está nas bancas quinzenalmente, com 60 páginas em preto e branco e capas em cores, com leitura ocidental, ou seja, da esquerda para a direita (ao contrário da maioria dos mangás publicados hoje no Brasil, que mantém a leitura original da direita para a esquerda). Ao final de cada exemplar, há um ótimo glossário com os nomes das personagens, seus países e explicações sobre as relações entre eles, o que auxilia muito na compreensão da história.

Há apenas dois pequenos problemas, ambos relacionados com o fato de a editora brasileira ter optado pela versão ocidentalizada.

O primeiro é que, para possibilitar a leitura da esquerda para a direita, as páginas do original em japonês foram espelhadas, isto é, invertidas, o que é prática corrente em mangás publicados nos Estados Unidos (salvo algumas exceções como a edição da Dark Horse do excelente Blade of the Immortal, na qual cada quadrinho foi recortado e remontado na página). O problema é que o espelhamento destrói o ritmo original de leitura. Além de pequenos detalhes, como o fato dos personagens passarem a usar a mão esquerda, muitas vezes é difícil acertar a seqüência dos quadrinhos, causando desconforto ao leitor e freqüentemente quebrando o ritmo da leitura e, por conseguinte, diminuindo o envolvimento com a história.

AS ONOMATOPÉIAS

O segundo problema está ligado ao tratamento dispensado pela editora ocidental às onomatopéias, isto é, às palavras que representam sons, ruídos, gritos etc. No original japonês, as onomatopéias são escritas no alfabeto silábico katakana e estão fortemente integradas ao desenho, inclusive do ponto de vista da composição geral do quadrinho. No entanto, elas são incompreensíveis para quem não lê japonês. A adaptação para os países que usam o alfabeto romano deixa as editoras com um grande dilema: o que fazer com as onomatopéias? No Brasil, muitas editoras optaram por deixar as onomatopéias originais e colocar ao lado, em letras pequenas, o correspondente em português. Outras optam por retirá-las completamente e substituí-las pelo correspondente no idioma para qual o texto está sendo traduzido.

No caso da edição brasileira de Dark Angel, deduz-se que está sendo usada a adaptação americana, como mostra a presença de sons como whoosh e rumble, e que essa adaptação optou pela segunda possibilidade. As onomatopéias japonesas foram em sua maioria apagadas e substituídas, porém, o letrista não foi especialmente feliz nas suas soluções. Principalmente no primeiro volume, as onomatopéias são representadas por letras tão grandes e pesadas que às vezes chegam a eclipsar a arte do desenhista, fazendo com que, em vez de uma cena com alguns ruídos de fundo, tenhamos a impressão de estar diante de um ruído com uma cena de fundo...

Contudo, dado o alto grau de integração ao desenho, nem sempre é possível suprimir as onomatopéias japonesas sem danificar o desenho. No entanto, como as páginas originais foram espelhadas, as onomatopéias japonesas também estariam... espelhadas! Como não era possível eliminar a onomatopéia original, nota-se que freqüentemente o letrista teve que transformar as letras japonesas em letras romanas, da melhor maneira possível. Nessa tentativa de adaptação à forma geral das letras japonesas (que no alfabeto katakana são retas e cheias de ângulos), o letrista acaba também muitas vezes sacrificando a leitura, de modo que se fica em dúvida, por exemplo, se o som representado é RHO, ROH ou HOR. Há ainda muitos sons incompreensíveis para um falante do português, o que nos faz pensar que o melhor teria sido melhor manter as onomatopéias originais, que seriam vistas apenas como parte do desenho, e utilizado outro tipo de letra para representar os sons.

Fora estes pequenos detalhes que surgiram da opção pela leitura ocidentalizada, a edição brasileira de Dark Angel é, com certeza, uma oportunidade inestimável de entrar em contato com a arte de Kia Asamiya e com uma série que combina na dose certa aventura, suspense, ação, intriga, romance, boas personagens e uma história rica e envolvente.

A edição brasileira de Dark Angel é uma publicação da Mythos Editora, com 60 páginas, nas bancas quinzenalmente por R$ 3,90.

Selma Meireles é pesquisadora sênior do Núcleo de Pesquisas de Histórias em Quadrinhos da ECA/USP, docente da Área de Alemão do Departamento de Letras Modernas da FLLCH/USP e fã incondicional de mangás.