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Diário do FIQ - Dia 4

Todos os dias, um relato do nosso correspondente no Festival Internacional de Quadrinhos de BH

11.10.2009, às 12H00.
Atualizada em 18.11.2016, ÀS 06H11

A FIQ teve um sábado Craig Thompson.

FIQ

Não que, de repente, todo mundo tenha começado a sofrer com pais evangélicos, descoberto o amor e exorcizado seus demônios, como em Retalhos. Mas Craig Thompson foi o centro das atenções de boa parte do meu dia e do dia do FIQ. Aliás, entrou para a história do FIQ. Já chego lá.

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Foi o primeiro dia em que cheguei de manhã para o evento, pois havia programação para o dia inteiro. Eddie Berganza, o editor da DC, estava avaliando portfolios num dos teatros do Palácio das Artes. Quem queria falar com o homem tinha que ter pego senha alguns dias antes, e foram poucas. E o esquema não é assim por frescura. Berganza, ao lado de Joe Prado, avalia em muitos detalhes o trabalho de cada desenhista esperançoso na sua frente.

Ele fala de narrativa, de direção do olhar, de artistas de referência, de técnicas de desenho, da iconografia da DC, de impacto visual. Até mesmo de qual lápis usar. Cada consulta dura, no mínimo, 20 minutos. Enquanto fiquei observando a sessão, havia um desenhista que era um ótimo ilustrador mas ainda precisava trabalhar na sua narrativa, segundo Berganza. Ele é extremamente gentil, mas diz sem rodeios o que está ruim.

Rafael Albuquerque, ao meu lado, diz que não passou por esse tipo de processo antes de desenhar para a DC (fez Besouro Azul e Superman/Batman por várias edições). Já tinha quadrinhos publicados e mandava-os direto para os editores. O que ele menciona como mais atencioso: Mark Chiarello, diretor de arte geral da DC e responsável por projetos diferenciados como O Longo Dia das Bruxas e Wednesday Comics.

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Fim da manhã, encontro Bruno Azevêdo, o maranhense autor de Breganejo Blues. Ele é engraçado nas observações que faz do FIQ, com cabeça afiada de escritor. Ganho uma edição autografada de Breganejo que, infelizmente, só vou ter cabeça para ler quando voltar do FIQ.

Também encaixo nesse fim de manhã uma entrevista com Gustavo Duarte, o autor de , que está com a trupe 10 Pãezinhos e autografando ninhadas de sua pequena HQ independente e sem texto. A gente conversa sobre o equilíbrio entre sua carreira no jornal Lance, como chargista, e o que quer fazer nos quadrinhos. A conversa completa sai no Omelete em breve.

Na mesa ao lado, vejo que o editor da Quadrinhos na Cia. (e cozinheiro) André Conti já nos agraciou com sua presença progressivamente Yul Brinnerzística (roubei a expressão da esposa dele; desculpe, Vanessa). Ele está conversando com José Aguiar, então temos uma pequena reunião omelética.

Daqui a pouco chega Rafael Grampá. Ainda não o conhecia pessoalmente, apesar das conversas por e-mail. Ele havia trocado as pilhas durante o vôo ou, como diz um personagem do Scott Pilgrim, "a síndrome de déficit de atenção é tão forte que nem dá para brincar". Gesticula, pula, canta, dança, gesticula, fuma (aliás, anote: todo quadrinista fuma, fora Moon e Bá) e dança mais um pouco. Disse que eu ainda não vi nada, pois só vai começar a beber depois da sua apresentação, às 15h.

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Conti, Grampá, Ivan Brandon e eu partimos para almoçar. Encontramos Craig Thompson e Sierra Hahn. Thompson, que é um fiapo (e a cara do Érico Borgo, insiste Sidney Gusman), passa uma hora e meia comendo um pratão de feijoada enquanto participa das conversas sobre tudo, inclusive quadrinhos. Discute-se a extradição de Roman Polanski, Cidade de Deus e o projeto que Joe Sacco (o quadrinista jornalista de Palestina) deveria fazer no Brasil.

Ivan Brandon é o cara mais ligado. É tanto uma espécie de central de dados quanto um teórico de cultura, comportamento e política norte-americana e mundial. De vez em quando, solta piadas ruins sobre Polanski e tem iluminações: "vou criar um personagem que é um garoto que descobre alguma coisa que lhe dá poderes, tipo Shazam, mas dessa vez ele pode escolher os poderes. Inventei isso agora no caminho."

Thompson ainda não deu conta da feijoada e já é hora de Grampá sair para sua apresentação. Thompson e Sierra vão ficar no hotel, então pergunto se finalmente posso ter com ele aquela conversa no gravador. Ele não sabe dizer "não".

O papo dura meia hora - falamos até de Bush e Obama. No final, ele diz que foi uma entrevista muito fácil. Prometo então perguntas mais complicadas para quando nos vermos de novo, em São Paulo. Mas, mais tarde, descubro que não vou precisar. Todo mundo está prestes a ter seu dia Craig Thompson também.

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"O FIQ é o caos" - Diogo César, autor de A Casa ao Lado, enquanto entro na Tenda Eugênio Colonnese. Avisei que ia citá-lo. Explicações, só com o próprio.

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Fim da tarde de sábado e todos os espaços do evento estão lotados. Alguns dizem que não está tão cheio como na edição anterior; outros acham que, como há dois anos atrás havia um espaço único, era mais fácil perceber a aglomeração. Pra mim, está mais do que bom.

Não consigo dar três passos sem conhecer gente nova - naquele esquema "até agora eu só conhecia você ao lado de uma @" - ou parar para conversar. É, de novo, a questão da impossibilidade de fazer tudo. Perdi tanto a apresentação de Jens Harder, quanto a discussão sobre Blackest Night e o "bate-papo relâmpago" (30 minutos) de Grampá sobre cenas de ação - algo que o autor faz questão jogar na minha cara depois, com palavras que não devem ser repetidas nesse espaço.

Consigo, porém, ver a apresentação de Guy Delisle. Sisudíssimo em todas as vezes pelas quais passei por ele, Delisle até esboça alguns sorrisos de canto de boca durante sua fala. Mostra os exercícios de animação que inventou durante sua breve carreira como animador, alguns de seus quadrinhos sem texto, como Aline et les Autres e os álbuns de Louis, personagem baseado em seu filho. É o seu website, na verdade. Ele mostra uma história que envolve uma personagem de topless. Comenta que, quando fez uma palestra numa faculdade de artes em Jerusalém, onde passou alguns meses deste ano, a história fez um terço de sua plateia levantar-se e deixar a sala. "E eram estudantes de Artes", ressalta o autor.

Logo depois, há uma mesa redonda sobre "Scans e o mercado de HQs". Amauri de Paula, Joe Prado e Sidney Gusman comentam prós e contras da introdução da internet no mercado de quadrinhos, desde a pirataria até os autores que conseguem reconhecimento através de webcomics (Victor Cafaggi, do Pequeno Parker, é citado como um dos melhores exemplos nacionais).

Todos concordam que a pirataria de quadrinhos - não só conseguir quadrinhos americanos um dia após sua publicação nos EUA, mas também gente que escaneia quadrinhos nacionais ou traduz e edita profissionalmente os estrangeiros apenas para disponibilizar na web - é algo irrreversível. Falta, segundo Gusman, que "as editoras tirem suas bundas das cadeiras" para fazer novos modelos de negócio, e não só que se processe piratas.

Ele também comenta o sucesso que a Máquina de Quadrinhos, site com a Turma da Mônica, está fazendo. Você pode usar o sistema para criar uma HQ com um set básico de personagens, mas também pode pagar para ter acesso a extras. Gusman diz que não só novos roteiristas para os gibis da Mônica foram contratados por conta do site, mas que é impressionante o número de pessoas que usa a versão paga do serviço.

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Mais uma caminhada pelos corredores, mais encontros com pessoas de carne e osso que não são só @ (como Lobo, ex-editor da Desiderata e autor de Copacabana), mais fotos. E mais uma entrevista - Cizo e Felder, os idealizadores do Supermercado Ferraille. Para quem não viu, a exposição consiste em fazer versões bizarras dos típicos produtos dos supermercados brasileiros - há o Kit Maria Chuteira (esperma de jogador de futebol), a pizza em lata, piranhas empanadas, "leite de touro condensado" e um garrafão de "Caipirignac" (veja na galeria).

Eles comentam comigo como funciona a Requins Marteaux, editora com a qual trabalham, e as diferenças entre a exposição Ferraille na Europa e aqui - inclusive a dose de censura que receberam no Brasil.

Prontos para a overdose de Craig Thompson? Começa com a sua apresentação, marcada para as 19h30 (à qual chego atrasado porque estava pegando autógrafos do trio Mondo Urbano, no lançamento de Encore), que é a primeira que faz o FIQ impedir a livre passagem da audiência. O lugar está mais lotado do que nunca, com muita gente sentada pelo chão. Pela primeira vez, também, os criadores em destaque na Feira, como Moon, Bá, Grampá, Becky Cloonan e Vasilis Lolos, estão ali para assistir outro convidado.

O painel vira uma sessão de terapia, com uma saraivada de perguntas sobre a família do autor e suas crenças pessoais. Thompson, como comentei, não sabe dizer "não". Apenas solta "THAT’s a personal question..." antes de responder se ainda acredita em Deus (não acredita em céu e inferno, mas que existe algo maior). Mas ele fala abertamente, como já respondeu em entrevistas, sobre a longa viagem de carro em que seus pais finalmente conversaram com ele sobre o que havia colocado em Retalhos (eles não gostaram) e sobre como o livro melhorou a relação com seu irmão.

O ápice da conversa vem quando alguém chega a recomendar a Thompson o que ele deveria dizer para sua mãe, que crê que ele vai para o inferno por Retalhos. Só faltou o divã e cobrar a consulta na saída.

E ainda não acabou. Encerrado o bate-papo, Thompson parte para o estande da Quadrinhos na Cia. e começa uma sessão de autógrafos. Imediatamente forma-se uma fila de pelo menos 60 pessoas, que vai do fundo à entrada da Tenda Eugênio Colonnese. André Conti, o editor de Retalhos, fica apavorado - pois Thompson aperta as mãos, faz um desenho elaborado de autógrafo e tira uma foto com cada pessoa. E a fila continua crescendo - a mais longa sessão de autógrafos que o FIQ já teve.

Quase duas horas depois, o estande está sendo fechado pelos seguranças e Thompson ainda está lá dentro dando seu último autógrafo - que só foi o último porque a fila foi trancada pelos seguranças e alguns fãs tiveram que ser convencidos que, além de não saber dizer "não", Thompson precisa das mãos para continuar desenhando seus próximos álbuns.

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Já é perto da meia-noite quando quase toda a FIQ direciona-se para um restaurante famoso de Belo Horizonte. Há uma mesa do pessoal da organização, com alguns dos convidados, outra do pessoal independente e mais duas do pessoal que chegou atrasado - e que ficou uma hora esperando para sentar e comer. Estou nessa última turma.

Na mesinha apertada em frente ao forno, sento ao lado de Becky Cloonan. Vasilis Lolos, do outro lado da mesa, põe dedo indicador e médio nos olhos, depois aponta-os para mim. Sim, eles são. Me comporto.

Télio Navega, que cobre quadrinhos para O Globo, está na mesa também. Ele participa das sessões de aulas de português para Becky. "‘Bom’ is ‘good’, ‘bem’ is ‘well’", tento. Ela, comendo polenta frita: "Oh, isso é muito BEM!". Logo depois, a mesa inteira tenta explicar o complexo conceito de "pastel". "Deep-fried crépe?". O garçom nos salva com uma travessa dos próprios. E de corações de galinha, bem mais fáceis de entender (ela nunca havia comido). Quando cansa de ouvir nosso português, ela cantarola "diz mais nada...", que não tenho ideia de onde saiu.

Becky e Vasilis são elétricos como crianças de sete anos. Ficam fazendo tiros, explosões, joguinhos. No meu bloco de anotações, ela desenha algum ser antropomórfico cuspindo - e tanto interpreta quando escreve as onomatopeias "ptuu, ptuu, ptuu". É isso: eles são onomatopéicos.

Parece que há mais uma parada do pessoal, em um bar seiláonde, antes de voltar para o hotel. Tomo rumo para a minha cama, pois amanhã é o último dia de FIQ pra mim. Craig Thompson pergunta se vou acompanhá-los ao bar, mas digo que não. "I envy you", ele retruca. Mas ele é Craig Thompson, e não sabe dizer "não".

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Butim do dia:

- Breganejo Blues: Novela Trezoitão, do Bruno Azevedo;

- Pictorama e a trilogia de quatro HQs Powertrio - Overdose - Cabaret - Encore, do Mondo Urbano (eu já tinha, mas queria autógrafos);

- Pixu, de Moon, Bá, Cloonan, Lolos (também já tinha, mas queria autógrafos);

- Lapso #3, da Perca;

- Candyland, de Olavo Rocha e Guilherme Caldas (ganhei do pessoal da Itiban, de Curitiba);

- e Ato 5, lançado na FIQ por André Diniz e José Aguiar, que também só tive tempo de folhar: está linda.