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Diário do FIQ - Dia 2

Todos os dias, um relato do nosso correspondente no Festival Internacional de Quadrinhos de BH

09.10.2009, às 17H00.
Atualizada em 03.11.2016, ÀS 19H03

Só se comentava uma coisa durante a quinta-feira no FIQ: o dilúvio. São Pedro mandou uma tromba d’água sobre os leitores de gibi pecadores e restou a um barbudo (Alan Moore?) construir uma arca com o plástico dos estandes para salvar casais de álbuns franceses e fanzines brasileiras que, um dia, construirão um novo mundo. Para todos os outros, túmulo aquático.

FIQ

Bom, quase isso. É que, unindo "quem conta um conto aumenta um ponto" a um encontro de pessoas criativas, as notícias sobre a chuva no FIQ foram bem mais catastróficas do que o que realmente aconteceu. Ok, realmente havia goteiras (e buracos, mais do que goteiras) na Tenda Eugênio Colonnese - onde ficam todos os estandes de livrarias, editoras e estúdios - e a "sala de leitura do quadrinho mundial" de Marko Ajdaric (já falo dela) também sofreu. Sim, o pessoal da livraria Leitura Savassi perdeu material. Sim, alguns estandes tiveram que mudar de lugar. Mas ninguém morreu, temos luz (diferente de outras partes de Belo Horizonte) e poucos gibis se molharam.

Fora isso, alguns eventos atrasaram um pouco. Quando cheguei na Tenda, à tarde, Guy Delisle estava numa mesa meio escondida autografando Shenzhen, Pyongyang e Crônicas Birmanesas para uma única fã. A sessão de autógrafos estava marcada para as 15h na Leitura Savassi, mas a livraria ainda estava interditada enquanto o pessoal reorganizava os produtos.

Decidiu-se, então, que Delisle faria sua sessão mais tarde (e realmente aconteceu, com filas bem maiores, enquanto ele autografava ao lado de Liniers). Como bom abutre, aproveitei a situação para entrevistá-lo. Delisle falou do tempo que precisa entre chegar de uma viagem e escrever um livro sobre ela, da sua formação cômica e política e do que está acontecendo no quadrinho francês (apesar de canadense, ele mora há anos em Montpellier). A íntegra da entrevista você confere daqui a alguns dias no Omelete.

E, claro, momento tietagem: o autógrafo no meu Shenzhen está na galeria.

* * *

Depois da entrevista, passeio pelo salão do café e vejo uma comissão de gente estilosa chegando em fila, cheia de malas e roupas diferentes. São os convidados internacionais de Fábio Moon e Gabriel Bá: vêm, seguindo-os, Vasilis Lolos (cabelos emo-negros saindo por uma toca, mesmo com o calor), Becky Cloonan (baixinha, ruivinha, olhos muito azuis, coberta de roupas pretas) e Ivan Brandon (o cara, digamos, mais normal da turma e o único que parecia estar com calor).

O abutre ataca novamente. Chego no estande da 10 Pãezinhos, onde o pessoal se concentra, e vou pela abordagem indireta: compro alguns gibis deles e peço autógrafos. Quando recebo os gibis de volta, apresento meu cartãozinho do Omelete dizendo que, mais tarde, gostaria de entrevistar a turma. A responsável pelo estande me puxa para dentro na hora e me senta entre os três.

Primeiro, converso com Lolos e Cloonan. Os dois são jovens elétricos. Ele tem 28, ela, 29. Dizem que gostam da eletricidade que vem dos quadrinhos brasileiros e querem aproveitar para conhecer mais quadrinistas. A gente fala sobre Pixu, sobre como eles começaram a trabalhar juntos e seus projetos atuais. Os dois também são muito interessados em ver a cultura do heavy metal no Brasil.

Brandon, escritor e um pouco mais velho (tem 33), é ainda mais entusiasmado. É também o mais viajado da turma, pois gosta de encontrar "cenas" de quadrinistas pelo mundo todo. Falamos sobre os brasileiros que querem não só desenhar, mas escrever para o mercado americano, e o que precisam fazer para que isso aconteça. E além de conhecer outros quadrinistas talentosos, ele quer muita Skol. "Skol?", eu retruco. Brandon: "Oh, Antarctica, Brahma, whatever. Brazilian beer!"

Na saída do estande, também acabo conhecendo Rafael Albuquerque (bastante ativo no mercado americano), Eduardo Medeiros (que faz vários trabalhos com Rafael, como Encore) e Gustavo Duarte (da comentadíssima ), três caras que, apesar de muitas conversas por e-mail ou no twitter, ainda não tinha conhecido pessoalmente. Mais pra lista dos que eu posso transformar de @s em rostos de verdade. E entrevistas para mais tarde, sem dúvida.

* * *

Sim, voltamos agora à sala de leitura montada pelo Marko Ajdaric. Ele é um jornalista sérvio que mora há anos no Brasil e, daqui, escreve sobre quadrinhos para o mundo inteiro. A instalação que ele trouxe ao FIQ - e que já montou em outros lugares, como em Caxias do Sul, onde reside - tem um propósito bem direto: ao invés de ficar falando dos gibis maravilhosos que se produz no mundo inteiro, mostrar e dar oportunidade para qualquer pessoa pegá-los na mão e ler (claro, se você entender inglês, espanhol, francês, alemão, sérvio e até mirandês).

São só mesas, banquinhos, expositores e gibis. Quem quiser, pode passar o FIQ inteiro sentado e lendo material raríssimo.

A chuva de quarta feira molhou alguns dos álbuns - a sala de leitura estava em um espaço aberto, protegido somente por uma tenda. Na quinta, ele se mudou para dentro do salão principal, onde não vai mais ter problemas com a chuva. Mas Marko não está tão indignado com isso, e sim com a notícia que havia recebido no mesmo dia: sua ex-mulher havia jogado fora uma de suas coleções de gibis. Recomendou a mim não deixar gibis perto da esposa - ou, de preferência, encontrar uma esposa legal.

* * *

Conversei com um elfo. O nome dele é Renato Sambi Colotto, e é o único cosplayer que passeia pelos corredores da FIQ. Disse que esperava ver mais gente fantasiada, pois na 5ª edição, em 2007, apareceram vários cosplayers. Sua fantasia, baseada em personagem de World of Warcraft, foi costurada por ele mesmo. Passou o mês de julho inteiro preparando.

Quando perguntei se podia entrevistá-lo, Renato estava desenhando. Ele publica um fanzine com o divertido nome Confraria da Taverna do Anão Churrasqueiro. São desenhos bem peculiares, para uma história que se passa no universo de Dungeons & Dragons. Ele já passou das 30 edições. No verso de cada uma, há vários anúncios de lojas e serviços em Belo Horizonte - todos desenhados a lápis pelo próprio Renato.

Até o fim de semana ele tem que decidir se vai continuar rondando o FIQ ou se vai procurar mais cosplayers no Anime Festival (que não tem relação com o FIQ, fora a concorrência das datas). Lá, certamente, vai ter mais sucesso.

* * *

Encontrei Craig Thompson. Quando não estou escrevendo para o Omelete, uma das minhas identidades secretas é de tradutor de quadrinhos. Traduzi Retalhos para a Quadrinhos na Cia. Já havia conversado com Thompson por e-mail durante o trabalho e agora era a oportunidade de me apresentar pessoalmente.

Fora meu inglês ter desaparecido e ele me chamar de Enrrico, pelo menos consegui me apresentar e marcar uma conversa para mais tarde. Também conheci sua namorada, Sierra Hahn, que, não por acaso, é a editora da Dark Horse que tem relação direta com os brasileiros (Grampá, Moon, Bá) que trabalham para a terceira maior casa dos quadrinhos nos EUA.

Sierra participa do primeiro bate-papo no início da noite, sobre o mercado editorial. Acompanham ela Gisele de Haan - editora francesa, da revista Pilote - e o brasileiro Silvio Alexandre, que já trabalhou nas editoras Aleph, Mercuryo, Conrad e Pixel.

As falas dos três e as perguntas dos fãs giram em torno da comparação entre as realidades dos mercados americano, francês e brasileiro. Comenta-se a maturidade e a imaturidade nos mercados, adiantamentos para artistas, valores que se paga por página em cada país. A conversa é muito interessante, principalmente para quem quer aventurar-se como quadrinista no mercado nacional. Mas acaba rápido demais, com os organizadores controlando o tempo rigorosamente em função de outras palestras (ponto negativo do festival).

A fala final fica por conta de Silvio Alexandre, que diz ser um grande sinal de maturidade do mercado nacional já existirem bons adiantamentos para quadrinistas fazerem seus álbuns, nas grandes editoras. Mesmo que, na imensa maioria dos casos, seja para adaptações literárias - xodó do mercado nacional, pois ajuda as editoras a vender dezenas de milhares de exemplares para os programas federais e estaduais de bibliotecas escolares - o adiantamento é uma novidade no mercado nacional, e muito positiva.

* * *

A palestra seguinte é com Ben Templesmith, o artista australiano de 30 Dias de Noite. É a mais divertida do FIQ. Templesmith é curto e engraçado em todas as suas respostas para o pessoal junto a ele na mesa e para a plateia.

Diz estar cansado de desenhar vampiros após quatro anos com 30 Dias de Noite e seus derivados. Também comenta que não é muito questionado sobre o que pensa da adaptação cinematográfica do álbum - e que, sempre que perguntam, dá uma resposta diferente. A resposta da noite foi em três partes: (1) "Hollywood é um lugar estranho"; (2) "é muito legal ver seus desenhos ganharem vida"; e (3) "quanto ao roteiro do filme... bom, você decide."

Questionado sobre sua colaboração com Warren Ellis na série Fell, Templesmith diz, brincando ou não, que trabalhar com o escritor britânico foi um sonho realizado. Pergunta da plateia: "se você pudesse escolher um escritor de quadrinhos com quem trabalhar, com quem seria?". Templesmith: "Warren Ellis". Volta para a plateia: "eu quis dizer com alguém com quem ainda não tenha trabalhado". Templesmith: "Warren Ellis".

O artista comenta que Ellis é brilhante porque é um ótimo mentiroso - a persona que o escritor mantém online não tem nada a ver com a verdade. Como boa ovelhinha de Grande Mestre Ellis, prontamente aviso-o via Twitter que Ben Templesmith está destruindo sua reputação no Brasil. Ellis twitta em seguida: "O que você está falando sobre mim aí no Brasil, you scrawny bastard?" [http://twitter.com/warrenellis/status/4720427752]. Faço questão de ler para Templesmith na hora das perguntas. Ele não sabe que os tentáculos de Grande Mestre Ellis chegam até Belo Horizonte.

A palestra segue com várias fotos tiradas por Templesmith, tanto de seus trabalhos - o processo de lápis, nanquim, tinta e computador para cada página - quanto de suas viagens. Há inclusive fotos do recente casamento de Jim Lee, no Havaí (veja no site de Templesmith [http://www.templesmith.com/faze3/]). Para terminar, a última foto já é no Brasil: uma garrafa de cerveja.

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Butim do dia:

- Minis e Bury Your Treasure: um livro e uma espécie de fanzine de Becky Cloonan. E Nebuli: um gibi independente feito por ela e Vasilis Lolos. No estande da 10 Pãezinhos. Todos devidamente autografados.

- As cinco Confraria da Taverna do Anão Churrasqueiro, que mencionei lá em cima.

- Uma camiseta e um Kit Maria Chuteira do Supermercado Ferraille.

- Duo, nova HQ da dupla Pablo Casado e Felipe Cunha (outros com quem só conversava pela web, e agora conheço pessoalmente), e o fanzine Eterno, também desenhado por Cunha, com roteiro de Felipe Alonso.

No diário anterior, esqueci de mencionar o butim de quarta feira. Versão resumida: LTG, Beleléu, Kowalski, Quase #12, Prego #2 e Prego #3 (tudo do estande Quadrinhos Dependentes); Macanudo 2 e Shenzhen (cortesias da Zarabatana Books); Picabu (entregue por um dos cabeças do projeto, Rodrigo Rosa); e Edén, do Kioskerman (que ganhei de Juan Lanusse).

Hoje tem vários lançamentos de material independente, bate-papos sobre educação e quadrinhos, Adão Iturrusgarai comentando a versão de Aline na Globo e o Bat-Papo - fãs e desenhistas comentando Batman. Até o próximo diário!