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Demolidor: trajetória e criadores

Demolidor: trajetória e criadores

18.03.2003, às 00H00.
Atualizada em 12.11.2018, ÀS 17H05

O Demolidor tem uma característica interessante como personagem dos quadrinhos: embora tenha surgido durante Revolução Marvel na década de 60, sempre ficou no segundo escalão da editora, não tendo direito a desenhos animados, filmes e toda exposição na mídia de heróis como Homem-Aranha, Hulk, Capitão América e outros. Em contraposição, sempre tirou a sorte grande na seleção de escritores e desenhistas que o retrataram ao longo de suas quatro décadas.

Autores de primeira linha

Sua boa estrela já despontava nos primórdios de sua série, Daredevil, que estreou em abril de 1964. Logo na primeira aventura, teve roteiros de Stan Lee, que escrevia tudo na Marvel à época, e desenhos do ilustre Bill Everett. Everett foi um dos responsáveis pela primeira publicação da Marvel, em de 1939, na época chamada Atlas. Tratava-se da Motion pictures funnies weekly 1. Além disso, foi co-criador de Namor, o Príncipe Submarino e desenhista do staff da editora nas décadas de 40 e 50, quando ilustrou inúmeros gibis de monstros.

Daredevil 1 era seu retorno à Marvel após um período de afastamento. No entanto, as coisas saíram meio erradas. Diz a lenda que Everett entregou um trabalho tão ruim, impróprio para impressão, que Steve Ditko (outro desenhista Marvel da época - co-criador do Homem-Aranha) completou os desenhos antes de mandá-los para a colorização.

Nas edições 2 a 4, o substituto foi Joe Orlando, o desenhista italiano que viria a ser criador e editor da importante de linha de quadrinhos de terror da DC na década de 70. Seu trabalho virou referência para Alan Moore (veja a homenagem deste a Orlando em Watchmen) e Neil Gaiman, que revitalizou personagens suas em Sandman.

Wally Wood assumiu as edições 5 a 10, criando o uniforme vermelho no número 7. Wood vinha de uma carreira nos quadrinhos de terror da EC Comics e de colaborações com Will Eisner. Ele seria figura de proa nos quadrinhos independentes nos anos que se seguiram. Tomou até o lugar de Stan Lee nos roteiros da série por duas edições, 10 e 11, desenhadas por Bob Powell.

Jack Kirby, prata da casa, desenhou duas edições em que o selvagem Ka-Zar era reintroduzido ao Universo Marvel. John Romita, em um de seus primeiros trabalhos com os super-heróis Marvel, assumiu os desenhos da revista na edição 14. Na 16, desenhou pela primeira vez a personagem que o tornaria famosos: o Homem-Aranha.

Entretanto, o primeiro desenhista regular para a série foi o grande Gene Colan. Trabalhando nos quadrinhos desde a década de 40, ele era dinâmico em suas representações das personagens e na composição das páginas, fazendo um trabalho realmente de vanguarda. O caráter enérgico de suas composições resultava nos mesmos corpos deformados e estranhos de Kirby, mas os desenhos eram etéreos, lembrando fumaça que se juntava para criar as formas. O artista entrou na edição 20 e, fora alguns poucos tapa-buracos, só deixou a revista no número 100.

Neste meio tempo, Roy Thomas assumiu os roteiros na edição 55. No final da década de 60, Thomas vinha substituindo Stan Lee em diversos títulos da Marvel, e Daredevil foi apenas mais um. O estilo era praticamente o mesmo, então a troca foi quase irrelevante. Gerry Conway, outro roteirista faz-tudo na Marvel, foi o terceiro escritor regular do Homem sem Medo, a partir da edição 72. Steve Gerber, por fim, escreveu a revista do número 99 ao 117.

Fim de linha

A partir daí, Daredevil foi um gibi meio jogado para quem quisesse pegar. Passaram pelos roteiros Chris Claremont, Len Wein, Marv Wolfman e Jim Shooter, entre outros, num espaço de trinta edições. Da mesma forma, a partir da edição 101, um sem número de desenhistas rabiscou pela série: Don Heck, Bob Brown, John Buscema, Sal Buscema, Gil Kane, Carmine Infantino. Gene Colan voltava de vez em quando. A revista só teve um roteirista regular com Roger McKenzie, na edição 151. E desenhista regular...

Bom, aqui vale parar e explicar algo muito importante.

Até esta altura - e já estamos em 1979 -, o Demolidor era a típico personagem que não tinha histórias muito personalizadas. Era jogado, como o Batman dos anos 60, em situações que iam contra sua lógica interna - viagens interestelares, poderes místicos, vilões nada interessantes (como o Sr. Medo ou o Polichinelo). A partir da metade da década de 70, as histórias foram ganhando um clima mais urbano, adaptado ao herói. Todavia, uma mudança arrebatadora estava para acontecer...

Quem era o novo desenhista regular, na edição 158?

Frank Miller, um jovem promissor que havia desenhado o Homem sem Medo na revista do Homem-Aranha e logo foi contratado para assumir Daredevil. Insistiu com os editores e ganhou a chance de também ser o escritor da revista, na edição 165. O resto, sem dúvida, é história.

A era Miller

Miller trouxe influências do ritmo dos quadrinhos japoneses, e recuperou os experimentos em narrativa gráfica que Will Eisner fazia nos anos 40. Fixou para sempre o Demolidor como herói urbano e bastante adaptado a histórias envolvendo o crime organizado. Criou Elektra, desenvolveu o vilão Mercenário, levou o Rei do Crime (originalmente um vilão do Homem-Aranha) bem a sério e ainda vinculou o Homem sem Medo à moral católica, à filosofia oriental, aos ninjas assassinos e ao sensei Stick.

A clássica fase de Miller, feita em conjunto com o importante arte-finalista Klaus Janson, durou até a edição 190. Depois, não houve quem quisesse tentar superar o escritor consagrado. Então, Denny O’Neill, o próprio editor de Daredevil, teve que assumir os roteiros. O’Neill é famoso por ter revitalizado o Batman nos anos 70 e seria editor do Morcego durante toda década de 90. Isso explica porque o Demolidor, na época, lembra tanto o Cavaleiro das Trevas - crimes insolúveis, trabalho detetivesco, vilões estranhos como o selvagem Micah Synn.

Nova dança de cadeiras

Desenhistas também variaram nessa fase, até a chegada de David Mazzuchelli na edição 208. Com um estilo bastante realista, desenvolvia visivelmente seu trabalho a cada edição, e era bastante dado a experimentos com o nanquim e cores. Quando Frank Miller foi convencido a retornar à série em 1986, para a saga em sete partes A queda de Murdock, requisitou especificamente que o artista regular permanecesse na revista.

A volta e subseqüente saída de Miller novamente deixou a série sem direção. O escritor havia transformado a personagem, livrando-a de toda sua carreira profissional como advogado de elite e mandando-o morar na Cozinha do Inferno. Quem ia cuidar desses novos aspectos do Demolidor? A batata quente foi para as mãos de Ann Nocenti, uma jovem editora da Marvel.

Nocenti ficou algumas edições sem desenhista fixo. Só na 250 ganhou John Romita Jr., que desenvolvera um novo estilo de desenho muito chamativo. A dupla trabalhou com temas e abordagens que hoje caberiam numa série da Vertigo: o choque de classes, ideologia, religião, ecologia, perda de identidade... Nocenti ficou marcada pela abordagem não-convencional do Demolidor, o que rendeu muitas críticas dos leitores.

Lee Weeks assumiu os desenhos na edição 284, e cuidou da transição para o escritor D.G. Chichester no número 292. Este ficou encarregado de acabar com as aventuras psicológicas do herói, e colocá-lo de novo no submundo. A queda do Rei do Crime, que culminou na edição 300, é uma das boas histórias do período.

O nível baixou um pouco nas edições subseqüentes. Chichester continuava escrevendo histórias de conspiração, tentando pegar temas mais adultos, mas sem muito sucesso. Scott McDaniel, hoje desenhista de Batman e Superman, tornou-se o desenhista regular com um estilo ainda imaturo, mal definido e complicado. A dupla ganhou algum destaque na saga Caindo em desgraça, na qual o herói ostentava um novo uniforme que durou pouco mais de um ano. A trama, publicada em 93, foi produzida para revitalizar o interesse na série enquanto a mini-série Demolidor: Homem Sem Medo - onde Frank Miller e John Romita Jr. recontavam a origem do herói - fazia rebuliço nas lojas especializadas dos Estados Unidos.

Chichester continuou na série por mais dois anos, apesar das reclamações dos leitores. O escritor até escreveu seu último arco de aventuras com um nome fictício - Alan Smithee (nome utilizado no cinema quando o diretor não quer assinar a obra). Com a saída de Scott McDaniel, houve novo entra e sai de desenhistas: Tom Grindberg, Keith Pollard e até o brasileiro Alexandre Jubran.

Marvel Edge

1995. Ano da Marvelution, quando a editora resolveu dividir todos seus títulos em cinco diferentes linhas. Daredevil caiu na Edge, linha de vanguarda, com Justiceiro, Hulk e outros. J.M. DeMatteis e Ron Wagner foram escalados como nova dupla criativa, trazendo aventuras psicológicas macabras. Não deu certo, como toda linha Edge. Os dois caíram fora depois de apenas sete edições.

Época de mudar a abordagem. A nova dupla convidada foi Karl Kesel e Cary Nord. Kesel resolveu ir longe, buscando as raízes cômicas do Demolidor, da época de Stan Lee. A abordagem fez um bom sucesso de crítica, e Daredevil era uma das poucas boas séries Marvel desse período. O escritor, porém, teve de sair da revista para assumir outros títulos e deixou tudo nas mãos do novato Joe Kelly. Este continuou com a comédia, mas sem tanto êxito.

Marvel Knights

Já estamos em 1998. No início do ano, foi anunciado que, em setembro, a Marvel lançaria uma nova linha chamada Marvel Knights, administrada pelos editores Joe Quesada e Jimmy Palmiotti. A divisão tinha como objetivo trazer criadores de renome para mexer com personagens Marvel, e Daredevil, relançada com um novo número 1, seria o carro-chefe. O título anterior é cancelado na edição 380. O próprio Quesada cuidou dos desenhos na nova série, e convenceu o diretor de cinema Kevin Smith, apaixonado por quadrinhos e que começava a fazer seus primeiros roteiros para editoras menores, a escrever o Homem sem Medo.

Sucesso absoluto... o que nos traz até hoje.

Daredevil pulou de um título de segunda linha para o primeiríssimo escalão da Marvel mais uma vez. Após Kevin Smith, os escritores David Mack, Brian Michael Bendis e Bob Gale escreveram arcos de histórias, com desenhistas variados. A partir da edição 26, a série ganhou um time regular: Brian Bendis e o desenhista Alex Maleev. A dupla está fazendo um alvoroço sem tamanho entre a crítica pela ousadia nos roteiros e nos desenhos. E o Homem sem Medo não poderia estar em melhores mãos. É a velha sorte, mais uma vez.

Há alguns anos, com a promoção de Quesada para o cargo de editor-chefe da Marvel, uma nova linha de quadrinhos foi criada, Ultimate Marvel, visando o novo leitor do século 21. Juntamente com a prata da casa - X-Men, Aranha e Vingadores -, o Demolidor também teve sua versão Ultimate numa revista em que o Aranha recebe convidados, Ultimate Marvel Team-UP. O responsável pela adaptação é Brian Bendis, o mesmo roteirista da versão tradicional do herói. Recentemente, o herói também ganhou sua própria revista no novo selo