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Burne Hogarth e Tarzan

Burne Hogarth e Tarzan

03.01.2001, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H11
Em geral, as histórias em quadrinhos, na ânsia por buscar legitimidade junto às camadas mais influentes da sociedade, costumam ser postas à prova diante das artes mais tradicionais. Assim, grandes narrativas dos quadrinhos são relacionadas com obras clássicas da literatura. Extratos de obras – quadrinhos específicos, detalhes de enquadramento, etc. - são comparados com quadros famosos. Alguns autores de quadrinhos, devido à qualidade de sua obra, são equiparados a pintores cujo dote artístico é inquestionável. Foi o que aconteceu com o norte-americano Burne Hogarth, a quem denominaram de Michelangelo dos Quadrinhos, colocando-o no mesmo patamar do pintor da capela Sistina.

Deve-se reconhecer que, em muitos casos, essas comparações soam algo forçadas. Mas não é o que acontece com Hogarth. Absolutamente. Dizer que ele era um mestre do desenho, que dominava as técnicas da ilustração como ninguém, que estabeleceu novos parâmetros para a representação do corpo humano nas histórias em quadrinhos é muito pouco para dar uma idéia da qualidade de seu trabalho. É quase externar o óbvio. Qualquer leitor que olhe as histórias de Tarzan desenhadas por esse autor, ainda que seja apenas um neófito na leitura de histórias em quadrinhos, sentirá que está diante de algo fora do comum. E dificilmente conseguirá deixar de ficar extasiado. Embasbacado, mesmo. Mas isso também seria pouco.

UM INÍCIO PRECOCE

Na realidade, Hogarth transcende todas as definições. Ele juntou as técnicas de ilustração com a narrativa quadrinizada de uma forma que ninguém mais poderia fazer. Por um lado, isso aconteceu devido à sua influência da arte barroca e dos pintores clássicos, com os quais havia se familiarizado durante os vários anos de estudo no Chicago Art Institute e na Chicago Academy of Fine Arts. Por outro, deveu-se a seu contato bastante precoce com as histórias em quadrinhos, tendo se iniciado como desenhista assistente no Associated Editors Syndicate em 1926, quando ainda tinha apenas 15 anos (ele nasceu em 25 de dezembro de 1911). Ali, com apenas 16 anos, já era responsável por uma tira de quadrinhos denominada Famous Churches of the World, além de também ilustrar crônicas esportivas. Em 1929, trabalhando para o Bonnet Brown Syndicate, criou sua primeira história em quadrinhos, denominada Ivy Hemmanhaw; que não obteve muito sucesso. Nos anos seguintes, foi assistente de Lyman Young em Tim Tylers Luck (Tim e Tok, no Brasil), além de ilustrar uma história de piratas, Pieces of Eight, com roteiro de Charles Driscoll.

O HOMEM-MACACO

Desta forma, é possível dizer que a ligação de Burne Hogarth com a personagem Tarzan, criação do norte-americano Edgar Rice Burroughs que debutara na revista All Story, em 1912, sendo depois publicada em livros que venderam vários milhões de exemplares, deu-se quase que naturalmente. Em 1937, Harold Foster, o conceituado artista que havia ilustrado as tiras diárias do herói em 1929 e depois, a partir de 1933, passara a ilustrar suas páginas dominicais, havia decidido partir para outras empreitadas, ilustrando uma história de sua autoria – o Príncipe Valente, para o King Features Syndicate. Desta forma, o United Features Syndicate necessitava de um desenhista que pudesse assumir o lugar dele à frente dos quadrinhos do Rei das Selvas, alguém que mantivesse a popularidade da história junto aos leitores e, ao mesmo tempo, reunisse condições de reproduzir o alto nível de preciosismo que Foster aplicava em seu trabalho.

Juntamente com outros artistas, Hogarth candidatou-se ao lugar, sendo imediatamente selecionado. Não se tem notícia sobre os outros candidatos, mas pode-se afirmar com segurança que foi quase uma covardia a disputa. Eles não tinham chance contra Burne Hogarth: sua primeira página para Tarzan, exatamente aquela que apresentou para concorrer ao cargo de desenhista, foi publicada em 9 de maio de 1937. E o incorporou definitivamente à história dos quadrinhos.

EXPLOSÃO DE MOVIMENTOS

No início, até mesmo por imposição do Syndicate, o artista viu-se obrigado a copiar o estilo de Foster. No entanto, aos poucos a sua marca se foi impondo à personagem. Abandonadas ficaram as poses estáticas, a imponência pitoresca que tanto caracterizavam o estilo ilustrativo de Foster. O Tarzan de Hogarth é energia contida, prestes à ebulição. É no seu corpo que se concentram todas as atenções, para ele se dirigem todos os olhares, quase que de uma forma hipnótica: nele, todos os gestos, por menores que sejam, das contorções febris às partidas bruscas, prenunciam uma explosão de movimentos. É quase como um bailarino em exercício, esquecido da platéia, olvidando-se do público que o envolve e completamente embevecido em sua própria arte, à qual se entrega sem descanso, sem contenções. E tudo isso em meio a um ambiente selvagem de total esplendor, brilhantemente descrito por Maurice Horn: “... um mundo de formas pontiagudas e eriçadas que se curvam sobre si mesmas: pináculos de lava ao redor de vulcões, picos aguçados como navalhas no horizonte, garras e bicos de aves de rapina, compridas folhas de árvores, chifres e presas enormes e deformadas. Os motivos fundamentais da curva e da ponta se acham presentes por toda parte. Uma sensação do trágico invade todos os acontecimentos, uma sensação que se evidencia nos rostos atormentados pela paixão ou pelo ódio”.

DRAGO

Hogarth trabalhou durante oito anos ininterruptos com a personagem. Desenhou histórias memoráveis, como Tarzan and the Amazons (publicada de 21 de maio a 23 de julho de 1939), Tarzan and the Barbarians (de 9 de agosto a 24 de outubro de 1943) e Tarzan against the Nazis (de 6 de agosto de 1944 a 11 de março de 1945), entre outras. Mas nem tudo foram flores para o autor. Durante esse período, foi ficando cada vez mais insatisfeito com as condições de seu contrato de trabalho com o United Features e decidiu se afastar para buscar uma criação própria. Assim, em novembro de 1945, publicou, pelo Syndicate Robert Hall, uma criação sua, Drago, um aventureiro que vive suas peripécias no extremo sul do continente latino-americano, na inóspita Argentina, em companhia de seu companheiro Tabasco, que fazia as vezes de Sancho Pança para um Don Quixote de traços varonis. Infelizmente, embora a obra contivesse, sob outras vestimentas, os mesmos elementos deslumbrantes que Hogarth havia emprestado às aventuras do Homem-Macaco, não conseguiu atingir o gosto popular e foi encerrada em fins do ano seguinte.

DA PRANCHETA PARA A SALA DE AULA

Em 1947, Hogarth cedeu às solicitações do United Features Syndicate e voltou a desenhar Tarzan. Nessa ocasião, conseguiu novas condições de trabalho, mais vantajosas para ele, que incluíam a possibilidade de escrever seus roteiros. Nesse período, o artista trouxe à luz histórias mais longas e complexas, como Tarzan on the Island of Mua-Ao (publicada de 16 de maio de 1948 a 1º de maio de 1949) e Tarzan and the Adventurers (de 30 de outubro de 1949 a 16 de julho de 1950). Essa segunda fase com a personagem duraria pouco tempo, no entanto. Em 1950, devido a outro conflito com o Syndicate, Hogarth abandonou as histórias em quadrinhos e passou a se dedicar ao desenho, à pintura e à School of Visual Arts, uma instituição que fundou em 1947 com o artista Silas Rhodes, e que iria ajudar a tornar perene a influência de Burne Hogarth nos quadrinhos norte-americanos. Por essa escola, nos anos seguintes, passaram artistas que se destacaram na produção de gibis, contribuindo para o aprimoramento da arte e sua aceitação pelo público. Destacar apenas nomes como os de Wallace Wood, Al Williamson e Gil Kane é, sem dúvida, fazer uma grande injustiça a todos aqueles que deixam de ser nomeados.

UM AUTOR MARCADO PELA PERSONAGEM

De uma certa forma, Tarzan foi, para Burne Hogarth, em termos de produção quadrinhística, ao mesmo tempo a sua revelação e o seu nêmesis. Nele tem o seu apogeu e nele é contido. No seu caso, a personagem parece aprisionar o artista, evitando que se dirija para outras plagas ou que persiga outras personagens (como Miracle Jones, quadrinho humorístico que criou em 1947, de brevíssima existência...). Daí, talvez, a decisão de abraçar a docência em artes, que o artista tomou no início da década de 50. Abandonou, assim, a produção de quadrinhos como atividade regular, uma decisão à qual iria se manter fiel praticamente até o fim da vida, descontando-se apenas uma breve incursão, durante a década de 70, em dois álbuns com a personagem que mais o marcou, Tarzan of the Apes e Jungle Tales of Tarzan. O resto de seu tempo, dedicou-o ao ensino, à elaboração de vários manuais sobre as técnicas da ilustração e do desenho, à exibição de suas obras artísticas, à participação em eventos sobre quadrinhos em vários locais do mundo (esteve no Brasil em 1970, durante a realização do 1º Congresso Internacional de Histórias em Quadrinhos no Museu de Arte de São Paulo) e a gozar de merecido reconhecimento internacional como um dos maiores artistas que já se dedicaram às histórias em quadrinhos.

Foi exatamente nesse último tipo de atividade, talvez a mais prazerosa para um artista, que Burne Hogarth encerrou definitivamente sua carreira, quase um ato teatral, embora não planejado. O Miquelangelo dos quadrinhos faleceu inesperadamente em 28 de janeiro de 1996, em Paris, logo depois de ter participado de atividades na exposição internacional de quadrinhos de Angoulème.

Leituras recomendadas

COMIC Art & Graffix Gallery. Artist Biographies - Burne Hogarth. Disponível em http://www.comic-art.com/bios-1/hogarth1.htm

GOULART, Ron. Tarzan every Sunday. In: ---------. The adventurous decade: Comic strips in the thirties. New Rochelle, N. Y. : Arlington House, c1975.
HORN, Maurice. A magia de Burne Hogarth. In: BURROUGHS, Edgar Rice, HOGARTH, Burne.
Tarzan: O filho das selvas. Rio de Janeiro : Editora Brasil América Ltda., 1973. p. v-xxxviii.