Netflix/Divulgação

Netflix

Crítica

Notas de Rebeldia

Filme da Netflix foge de estereótipos e usa conflito entre pais e filhos para conversar sobre sonhos e projeções familiares

02.04.2020, às 19H15.

Logo em seus primeiros minutos, Notas de Rebeldia apresenta o contraste cultural que dita o tom da produção até o seu final. Enquanto o hip-hop acompanha os créditos de abertura, as cenas se alternam entre uma churrascaria de um bairro norte-americano comum - as costelas de porco sendo grelhadas, o famoso molho barbecue sendo acrescentado - e os operadores de uma vinícola trabalhando na alquimia do laboratório para converter uvas em vinho. Há algo curioso que revela variações de cócegas no paladar. No entanto, a sequência também evoca uma madura guerra de classes culinárias – e sociais.

Esse contraste é representado na história de Elijah (Mamoudou Athie), jovem afro-americano de Memphis que vive com dois trabalhos muito diferentes para se sustentar: vendedor em uma loja especializada em vinhos e na cozinha da churrascaria de seu pai, Louis (Courtney B. Vance). Desde pequeno, Elijah e a família ajudam o pai no restaurante, que foi herdado de seu avô. Conservador, o sonho de Louis é ver o filho seguindo o seu caminho e assumindo os negócios, mas o sonho de Elijah, na verdade, é se tornar um grande sommelier de vinhos.

Louis envolve o filho em todos os aspectos do negócio e por um tempo finge que não está ouvindo as dicas do jovem sobre a carreira que deseja. Elijah já foi obcecado por vários sonhos, de ser DJ até lecionar no Japão, e essas paixões passageiras dão a Louis uma desculpa para não levá-lo a sério. O que faz a diferença para o jovem é que o apelo por achar algo que de fato ame é ouvido em alto e bom som por sua mãe, Sylvia (Niecy Nash, confortabilíssima no papel). Ela apoia o filho em todos os momentos, inclusive na inscrição no curso para se tornar sommelier.

O longa, que marca a estreia na direção de Prentice Penny, é bem-sucedido quando se concentra no relacionamento de Elijah com sua família. Nos momentos em que se reúnem, o roteiro e o elenco brilham em igual medida, principalmente Vance e Nash – e o primo JT (Bernard David Jones), alívio cômico que funciona com perfeição. O que dificulta o andamento da produção são os outros núcleos. Tanya (Sasha Compere), a namorada de Elijah, parece estar na história apenas para ser a voz na consciência do jovem, sem muito o que acrescentar, e os colegas do curso entram e saem sem mostrar qualquer importância dentro da narrativa.

Quando o filme retorna para os conflitos familiares – e para a realidade de viver na parte menos privilegiada de Memphis – é que o roteiro, também escrito por Penny, tira o que há de melhor em Notas de Rebeldia. Elijah quer viver um sonho completamente distante de seu mundo, retratado até na forma como apresenta os vinhos para seus clientes: “Chardonnay combina com qualquer coisa, assim como Jay-Z”; “pinot grigio é o Kanye West das uvas”. Sua família não enfrenta dificuldades e a churrascaria é um daqueles pontos turísticos conhecidos por toda a comunidade que vive em torno do local. Isso não torna o caminho de Elijah mais fácil, algo que é destacado em várias situações: ser um dos poucos negros no curso, ter que dividir o tempo entre trabalho e estudos – enquanto alguns podem sair de Harvard e ir direto para outra faculdade. Quanto mais enfrenta obstáculos, mais recluso Elijah se torna. É nítido o quanto ele entende do assunto, mas sente extrema dificuldade em dizer o que realmente sente para o pai. Elijah é um paradoxo: sempre sincero e fiel, mas que parece ter o melhor de si quando reservado.

Embora pautado em diferenças culturais, o filme é contido e foge de estereótipos que estamos acostumados a ver em outras produções. Se Sidney Poitier fez história nos anos 60 com filmes como No Calor da Noite e Adivinhe Quem vem para Jantar, que representam o preconceito em duas formas distintas, mas igualmente notáveis, Notas de Rebeldia conversa sobre o que é imposto de maneira estrutural enquanto sociedade. Não é exposto, mas compreensível nas entrelinhas. Louis sabe das dificuldades de um empreendedor negro fazer sucesso na sociedade americana e se sente desvalorizado com a opção do filho de seguir por outro caminho, o que também demonstra um choque de gerações tão comum nos dias de hoje – e pelo qual o avô de Elijah, contemporâneo de Poitier, nunca teve a liberdade de passar.

A escolha do diretor, também afro-americano, é conversar sobre seus personagens com dificuldades impostas pelo dia a dia de uma família como a do protagonista. A vida de Elijah e a do pai não são atormentadas por circunstâncias dramáticas além do que já vivemos fora da ficção. Seus problemas entre si têm a ver com sonhos opostos, diferentes estilos de comunicação e as projeções que podem acontecer entre pais e filhos.

Nota do Crítico
Ótimo