... e os mendigos se esbaldam!
O disco é integralmente composto por Mick Jagger e Keith Richards e com participação outra vez decisiva de Brian Jones. Apesar de, segundo certos relatos, já estar de saída da banda. Na constituição do disco, a banda contou, além da participação de Nicky Hopkins ao piano, com a colaboração do ex-Traffic Dave Mason, do ex-Family Rick Grech, do percussionista Rocky Dijon, do Watts Gospel Street Choir (não tenho a informação precisa, mas deve ser uma das incursões extra-Stones do baterista Charlie Watts) e dos vocais de Marianne Faithfull, Anita Palemberg e Jimmi Miller.
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O disco começa com a capa. Uma foto de um banheiro que não obstante o detalhe de um rolo de papel higiênico e de um sabonete ao alcance das mãos e dos olhos, a impressão que provoca não é de limpeza e alívio, mas de velharia e sujeira. Como todo banheiro público que se preze, é cheio de desenhos e de escritos. Na front page curiosamente, não há nenhum passaralho voando, como é hábito nos banheiros tupiniquins. Mas, lá está uma mulher pelada, o símbolo hippie, duas cruzes distintas, uma mão onde as letras escrevem L.O.V.E., e uma série de frases que nem a lupa leu. Na back page, os créditos do disco respeitando a estética trash. A edição nacional, em vinil, não respeitou esta arte. A capa era branca com o nome do disco e da banda caprichosamente escritos com letra de convite de casamento. Parece-me, entretanto, que também na ilha britânica a capa original foi proibida. Fracasso da revolução parisiense? E eles não estavam sob uma ditadura militar que cuidava de prender e matar comunistas e dos bons costumes da família brasileira. A foto, no interior da capa, representa os mendigos no banquete. À exceção de Jagger, os outros stones vestem costumes que evocam camponeses medievais.
Ouvir o disco é certamente entrar em um mundo sonoro interessante.
"Sympathy for the devil" abre o disco. A base da composição é a percussão (Watts, Wyman, Dijon), o piano de Hopkins, o baixo tocado por Richards e o vocal de Jagger. As guitarras (também Richards) entram apenas para rasgar o ouvido em solos curtos. O mago Jones está apenas nos vocais. Trata-se de uma das mais radicais incursões da banda no cancioneiro político. O devil em questão, um homem de boas maneiras e bom gosto que se chama Lúcifer e gosta de boa educação e, com respeito, pede para ser convidado, esteve presente em muitos dos fatos históricos que espantam o Ocidente. Fez Jesus duvidar, orientou Pilatos, derrubou o czarismo, andou por Bombaim, esteve ao lado de generais hitleristas, dirigiu as balas que matou os Kennedy e roubou a alma e a fé de muitos. As majestades satânicas assim continuavam.
Segue "No expectations". Andamento inteiramente blues e música que selou muito romance e melou muita cueca nas festas juvenis no final dos anos 60. Traz uma bela estrofe: "our love was like a water (nosso amor foi como a água)/ that splashes on a stone (que explode na pedra)/ our love is like our music (nosso amor é como nossa música)/ its here, and then its gone (está aqui, e então some)". Brian Jones na slide guitar dá o tom instrumental.
"Dear doctor": blues do começo ao fim. Um píncaro entre as composições dos brancos ingleses para o blues mundial. "Parachute woman", uma das mulheres destruidoras de coração que os Stones cantaram. É a primeira faixa em que Watts senta à bateria e empunha as banquetas. Antes, apenas percussão. "Jig-saw puzzle" um libelo sobre a confusão de fatos, papéis, e do valor da verdade que inunda o mundo contemporâneo. O pai de família é bandido e a filha do bispo (anglicano pode procriar!) passa incólume pelo vagabundo estirado na porta da minha casa. Outra vez, Jones faz a diferença na slide guitar e no ligeiro mellotron. O baixo de Wyman é espetacular e faz uma dupla imbatível com a bateria repetitiva, precisa e fundamental de Watts.
O rock de verdade, puro filho do blues, aparece em uma única faixa. É um dos grandes rocks de todos os tempos e não deve estar ausente de nenhuma antologia: "Street fighting man". Não há guitarra elétrica na faixa. As guitarras acústicas, tocadas por Richards, são secundadas pelo piano de Hopkins e a cítara de Jones. A bateria, seguindo a tradição de Watts, é simples, precisa, casamento indissolúvel com o baixo de Wyman. A política está presente: que faz um jovem pobre vivendo na sonolenta Londres se não toca em uma banda. E os homens precisam brigar nas ruas.
Em "Prodigal son" o jovem sem rumo volta à cena, saindo de casa, ferrando-se e voltando ao teto paterno. Blues para figurar no panteão. "Stray cat blues" traz no nome a filiação rítmica, mas os adoradores do blues não a colocariam no panteão, apesar de uma composição entre as melhores do disco e, portanto, entre as melhores da banda. A execução é barulhenta e estridente e a slide guitar de Jones está obscurecida pelas guitarras de Richards. A música tem uma parte final instrumental, adornada pelas congas de Dijon num ménage a trois inesquecível com a bateria de Watts e o baixo de Wyman. A letra faz referência a uma garota de 15 anos com quem o personagem vai transar. E ela tem uma namorada que, se for tão selvagem quanto ela, peça que suba. O personagem repete várias vezes que não comete nenhum crime capital e espanta-se com a desenvoltura sexual da menina, que está longe de casa, sem que sua mãe sequer imagine o que faz de sua vida. "Factory girl" não conta com Brian Jones. Participam da faixa o bandolim de Dave Mason e o violino de Rick Grech. A presença de dois músicos reconhecidos a esta época, indica o valor do ausente Jones. É outro blues acústico sensacional, sem a bateria de Watts, mas com as congas de Dijon.
Encerra o disco "Salt of the earth". Outra composição espetacular e traz um detalhe que correspondeu a uma novidade. O vocal principal inicial é de Richards em dueto alternado com Jagger. Foi a primeira vez em que aconteceu o que se tornou um hábito em discos recentes da banda: vocal a cargo de Richards. E trata-se de mais uma canção política da banda. Ressalto uma estrofe: "raise your glass to the hard working people (dirija seu olhar para o povo que trabalha duro)/ lets drink to the uncounted heads (bebamos às suas incontáveis cabeças)/ lets think of the wavering millions (pensemos na incerteza de milhões)/ who need learders but get gamblers instead (que precisa de líderes e recebe no lugar aventureiros)". Pode parecer bobagem de minha parte, mas notar, para um país de língua não inglesa, que uma das mais populares bandas de rock não faz de conta que o mundo real exista e cantar com veemência que há pobres, que há má política, que há violência, que há prostituição juvenil tira do rock a aura de cantar somente o sexo, o amor, as drogas, as bruxas e os elfos. Não é para deixar de prestar atenção na composição em si, especialmente quando o vocal fica a cargo do coral organizado por Watts e o piano de Hopkins estraçalha.
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Quem não conhece esta obra prima, levante-se, vá à loja de CD mais próxima e compre o disco. Nada de pirataria.