Se o rockn roll embalou revoluções, se o rockn roll deflagrou a transformação nos costumes sexuais, se o rockn roll cantou contra a guerra e a favor dos direitos civis dos negros; enfim desenvolveu um discurso favorável à paz, à liberdade, à sexualidade, à convivência produtiva entre as etnias e ao socialismo, também foi objeto da sanha capitalista.
Repito aqui a referência ao filme Privilégio como uma bela advertência à distorção que o domínio sobre corações e mentes pode produzir. Domínio que pode surgir exatamente daquela fonte que, em um primeiro momento, exibe a face libertária. Inclui-se aí a possibilidade de um discurso progressista adquirir um viés estereotipado que reconstitui a falta de criatividade e a obediência sob uma forma mil vezes mais deletéria: os corações e mentes acreditam representar a mudança mas, na verdade, não vão além da repetição de códigos e ícones que significam nada mais que superficialidade.
Há antídoto?
Vale aqui levantar um paradoxo. O rockn roll é descrito, e assumo esta posição, como uma tendência cultural que rompe com o velho, apesar de um filho dileto da cultura de massas. No entanto, abaixo do Equador, as coisas não se passaram bem assim. O rockn roll chegou com outra marca. A do imperialismo yankee a favor da alienação da classe potencialmente revolucionária. A inteligentsia brasileira fitava com olhos tortos o cabelo, as roupas e o ritmo cantado em inglês.
Março de 1964, ou primeiro de abril daquele ano, as instituições brasileiras foram tomadas por um golpe militar. A bossa nova, também acusada de niilismo pequeno-burguês, alcançava dimensão internacional. O chorinho e o samba continuavam presentes, e os Centros Populares de Cultura reciclavam a ampla gama de ritmos regionais. Da moda de viola caipira à milonga gaúcha. O rock, neste contexto, podia representar um desagradável desvio à resistência ao golpe.
Vale, também, um comentário, talvez interessante. Um olhar ao panorama musical, encontra nos Estados Unidos e no Brasil, dois países continentais, habitados por autóctones e objetos de maciça imigração. São nações realmente ricas no que se refere aos estilos musicais e à multiplicidade de alternativas apresentadas à música popular. Todavia, cabe apontar a diferença, para a polêmica e para o debate: rockn roll revolucionário acima do Equador; reacionário abaixo dele.
Esta fala serve a dois propósitos. O primeiro é não esquecer que acompanhar o moderno para exibir uma insígnia, sem a devida reflexão, é tão lamentável quanto o mais empedernido conservador. O segundo é lembrar o tom economicista que paira como um fantasma ridículo sobre a criação musical. Este momento, sobre o qual escrevo, pode revelar o preciso instante que indicou ao mundo que o rockn roll podia ser um big business.
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O texto em continuação é baseado nas informações do livro Rock family trees, de Pete Frame. Um livro obrigatório e absolutamente surpreendente para quem conhece o rock. As informações contidas nesta obra vêm a calhar para a demonstração da tese de morte e renascimento do rock.
Vejamos: no mês de março de 1957, os grandes sucessos musicais incluíam Chuck Berry (a magistral School day), Eddie Cochran, Lucille de Little Richard, Carl Perkins, The Platters. Já Elvis comparecia com All shook up. Havia ainda os obscuros The Gladiolas and The Diamonds, Frankie Lymon and The Teenagers e Guy Mitchell; como é evidente, sucessos de grupos vocais e os característicos lonesome rangers da geração zero do rock.
E assim os meses se sucedem até janeiro de 1963. Nas tais paradas de sucessos, o raro não norte-americano é Cliff Richard, o british lonesome ranger. O cenário roqueiro, portanto, ficou inalterado por muito tempo. E, como já disse, se mantido este estado de coisas, o rockn roll transformar-se-ia em uma babaquice interminável. Por pouco tal não ocorreu. E, decerto, assim seria se uma ou outra cabeça não sacasse que ficar no ícone, na repetição da marca, da insígnia, de uma época é o mesmo que não refletir, não se responsabilizar por um ato. Houve essas cabeças. E, em janeiro de 1963 aparece entre os sucessos uma iniciante banda britânica: Beatles e seu Please, please me. Esta canção dividia o pódio com grupos vocais como o Cascades (do dulcíssimo hit Rhythm of the rain) e os soul-men Marvin Gaye e Sam Cooke.
Somente em março daquele anos, reaparece outra british band; Gerry and The Pacemakers e seu animado mersey sound How do you do it. Abril já mostra duas bandas britânicas. Reaparecem os Beatles (From me to you) e o pouco conhecido Big Three, ambos mersey. Em maio, além dos Pacemakers, um novo nome: The Hollies (Just like me). Em julho, surge a banda que viria a ser conhecida como the greatest rockn roll band e uma legítimo representante da influência descarada do blues: The Rolling Stones. A canção é Come on. E, neste mês de verão acima do Equador, os Stones são um destaque solitário.
Entretanto, fica claro que o panorama está mudando. No ano seguinte, 1964, o número de bandas inglesas aumenta. Incluem-se desde conjuntos que, desta época, não saíram - Fourmost, por exemplo e - a grupos que inegavelmente deixaram marcas pelo mundo: Beatles e Stones. Assim, em dezembro de 1964, entre os quatorze destaques, seis são bandas inglesas: Beatles, Georgie Fame, Gerry and The Pacemakers, Moody Blues, Searchers e Them.
A partir daí, o cenário norte-americano muda. O lonesome ranger sai do holofote (para a meninada dos sixties mesmo Elvis Presley representava uma excentricidade) e começam a pulular bandas nos Estados Unidos, além das que se dedicavam ao surf-music vocal e instrumental. Até o estilo dos Beach Boys altera-se e gravam belos discos como Pet sounds e Wild honey. Aparecem os Byrds, o canadense Buffalo Springfield trazendo para o rockn roll a música e Bob Dylan, Pete Seeger e Woody Guthrie. Surge o Sonics tocando o mais selvagem rock da primeira metade dos anos 60, o Five Americans, o romântico Gary Lewis and The Playboys. E os empresários, revelando o ridículo fantasma que assombra o rockn roll, cometem a fraude: Monkees, goste-se ou não das melodias às quais emprestaram suas vozes. E grande fraude a despeito da tentativa desta banda, em um show ao vivo, no auge do desespero por se mostrarem músicos, de garantirem que tocavam mais de um instrumento.
Enfim, despontava a nova cara do rockn roll. Estava ressuscitado. Mas, cuidado!!! A indústria musical, a cultura de massas e o fantasma ridículo nunca deixaram de dormir com um olho aberto.