LUNIK 9.
Neste século XXI, o rock é um sóbrio senhor de 50 anos. Sua idade, no entanto, não impede que o olhem como adolescente. Eterno adolescente. Suas contribuições para a música de todos os tempos e sua imersão na música de todos os tempos não são reconhecidas uniformemente. Ao representar o rock, o imaginário social vê o topete esquisito, a jaqueta de couro ou cabelos longos e canto berrado.
É positiva, apesar de incompleta, esta imagem. É verdade que não se aproxima do rock quem quer maestria, quem quer erudição, quem quer alta cultura, quem quer instrumentistas virtuosos, quem quer preocupações sociais. Aproxima-se do rock quem quer ritmo e happening, quem quer maluquice e descompromisso, quem quer sandice e simplicidade, quem quer dança e sexo.
É positiva, apesar de incompleta, esta imagem. Se aquele que se aproxima levantar ligeiramente o pano, faz uma descoberta. Descobre que pode haver criatividade, erudição, inteligência, virtuosismo, experimentalismo e preocupações com a marcha do mundo. Veja só: há no rock até preocupações com o rumo social, político, ambiental, cultural da sociedade. Basta o exemplo da mais popular e conhecida banda de rock: Beatles. Basta comparar o disco Please, please com o Sgt. Peppers Lonely Heart Club Band. Somente um surdo preconceituoso não percebe a diferença musical e poética entre os discos.
Introduzo desta maneira o outro momento em que o rock desfrutou no Brasil: a Tropicália.
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Você sabe por que está aqui, não é? Vocês estavam pisando em um terreno perigoso. Incitar a juventude, num momento tão difícil para o país, com esses guerrilheiros por aí, é uma coisa muito perigosa. Vocês não imaginam o que estavam promovendo. De um oficial da Inteligência Militar para Gilberto Gil. Gil encontrava-se preso pela ditadura militar no quartel da Polícia do Exército, na Tijuca, Rio de Janeiro. Sua prisão e a de Caetano Veloso teve lances similares a passagens dO processo e dO castelo de Kafka. Prisão sem acusação formal, prisão sem envolvimento dos presos com a revolução socialista. E ninguém entendeu nada. Nem a esquerda musical nem os militares... Ano de 1968.
O militar discorreu sobre a rebeldia da juventude naquela época e como a música pop e o rock poderiam funcionar como elementos desagregadores dos valores tradicionais da família. Uma força que, no Brasil, estaria sendo usada pela esquerda para destruir a estabilidade social e política... junto a Freud e a Marcuse. De outro militar a Caetano Veloso preso. De fato, nada entendeu nada... Ano de 1968.
Guardadas as devidas proporções, estes militares não foram diferentes dos conservadores norte-americanos ao flagrar o rock caminhando, belo e revolucionário, pelo moralismo e pelo fascismo das famílias yankees. A diferença é que nem Presley, nem Berry, nem Lewis estiveram submetidos ao sadismo e à arbitrariedade dos militares latino-americanos.
Você está por fora, Caetano. Veja o programa do Roberto Carlos. Ele é que é forte. O resto está ficando um negócio chato, tão chato que prefiro cantar músicas antigas. Largue esse violão e cante com uma guitarra. O violão é muito pouco para você! Escolha um instrumento que tenha o mesmo grito, que tenha o seu gesto. De Maria Bethânia para seu irmão Caetano Veloso... Ano de 1967.
Bethânia, performer por excelência, sabia bem do que falava: da estética.
Naquela década, os anos 60, a cultura tinha seus lugares e estes muito bem definidos. A guitarra representava o rock, o violão a MPB. A dimensão de um tabu separava os instrumentos e quem os empunhava. O espírito dos anos 60 levava a sério estes ícones. Consistia numa discussão acalorada se a música brasileira, tocada por uma guitarra, ainda merecia ser considerada genuinamente nacional. Desacordo no tema produzia inimigos. No âmbito artístico, Caetano e Gil criaram polêmica ao se acompanharem por bandas de rock ao concorrer nos festivais de música que as redes de TV patrocinavam.
O empresário confessou que estava bastante descontente com a música popular no Brasil. Em sua opinião, comparada ao que estava acontecendo em outras partes do mundo, a MPB soava velha e preconceituosa. Do empresário e produtor Guilherme Araújo a Gilberto Gil... Ano de 1967.
Por inacreditável que pareça, a referência de Guilherme Araújo não se resumia a Miles Davis e sua incursão no fusion jazz-rock. Referia-se à marcha do rockn roll. Referia-se às novidades sonoras e poeticamente militantes que os músicos traziam para esta manifestação típica da cultura de massas.
Caetano, nós temos que fazer um repertório novo para a Gal, que não seja iê-iê-iê nem bossa-nova. A gente tem que pensar em sambas-canções mais cafonas, que representam a alma do Brasil. Precisamos encontrar algo com esta violência poética, mas também com elementos do iê-iê-iê. Do artista gráfico Rogério Duarte para Caetano, antecipando Alegria, alegria e Domingo no parque... Ano de 1966.
Para quem não sabe iê-iê-iê, anglicismo onomatopaico de yeah, yeah, yeah, repetido no vocal de She loves you, dos Beatles, era uma maneira como o rock foi chamado na terra tupiniquim. Caracterizava aqueles músicos, Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Eduardo Araújo, Ronnie Von, etc, que, literalmente, reproduziram, seja por versões, seja por compor no mesmo estilo, o rock inglês e norte-americano sem se permitirem a acompanhar a evolução que acontecia no cenário mundial. A frase define bem a ambição dos que pretendiam inovar no cenário musical brasileiro: acatar e sofrer a influência do que ocorria de novo. E a onomatopéia é uma maneira de se referir à pobreza e à infantilidade da música inspirada fora do Brasil. Era o tempo que a revolução existia e o nacionalismo era um valor pouco criticado.
[Júlio Medaglia] acabou indicando [Rogério] Duprat, assegurando que ele tinha bagagem musical e criatividade de sobra para desempenhar o papel de George Martin, na linha beatle que Gil imaginava para sua composição. Comentar é discorrer sobre o óbvio. George Martin foi o maestro que acompanhou os Beatles em sua evolução musical... Ano de 1967.
Caetano queria um disco mais avançado que Sgt. Peppers, dos Beatles, mas também muito brasileiro e de interesse internacional. De Caetano para si mesmo. Não se trata de copiar o rock, portanto. Trata-se de navegar na mesma estrutura. A música popular brasileira, assim como o rock, não exige rios estreitos que traçam caminhos conhecidos a priori. Os argonautas podem se aventurar no oceano sem saber se há porto a chegar... Ano de 1967.
Eu quero fazer uma coisa na linha Beatles. De Gilberto Gil para o Quarteto Novo. Os rostos do quarteto se fecharam. De Quarteto Novo para Gilberto Gil... Ano de 1967.
O Quarteto Novo é uma reunião única de grandes instrumentistas da MPB: Heraldo do Monte (violão), Théo de Barros (baixo). Airto Moreira (percussão) e Hermeto Pascoal (flauta). Certamente, Gil não corresponde ao tapado, dedicado a imbecilidades. Quando se dirigiu a esta quadra de músicos geniais supôs que pudessem entendê-lo e acompanhá-lo em sua ambição. Gil não se esqueceu que eram grandes conhecedores da música brasileira. Este traço sustentou a suposição de Gil: músicos geniais devem reconhecer que a renovação da MPB urge! Era hora de outro movimento voraz e antropofágico, como havia sido a Bossa Nova do final dos anos 50 e início dos anos 60. Gil, Caetano, Gal, Tom Zé, Bethânia admiravam João Gilberto.
As informações entre aspas foram retiradas de Carlos Calado: Tropicália. A história de uma revolução musical, editado pela Editora 34.
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Não se afirma: a Tropicália é o rockn roll brasileiro. Afirma-se: no buraco entre o rock bem comportado e conservador da Jovem Guarda e a MPB banquinho e violão, amor ou revolução, a Tropicália aplicou o que podia ser notado na música popular mundial. Abria-se a música a caminhos criativos que rompiam com as barreiras culturais e étnicas. Trata-se, ao contrário do nacionalismo tacanho reinante em grandes nomes da MPB, de conferir à música brasileira uma dimensão universal que, sem dúvida, possuiu, possui e possuirá. O rock foi nada mais que um exemplo. Um bom exemplo, decerto. Se a cítara passou a ser um instrumento presente, se o oboé e os metais freqüentaram as composições, se Frank Zappa trouxe ao rock o que aprendeu com Stockausen, por que a MPB não poderia alargar seus horizontes temáticos e sonoros?
O disco Gilberto Gil 1968 é um bom exemplo. Arranjado por Rogério Duprat, tem a participação especial dOs Mutantes (na versão em CD, traz a música Questão de ordem, apresentada por Gil numa das edições do Festival Internacional da Canção, onde é acompanhado pelos Beat Boys). Os Mutantes - que todos conhecem e de onde saiu Rita Lee - e os Beat Boys - banda argentina que trouxe Tony Osanah ao Brasil - são bandas de rock. Os Mutantes festejados como, talvez, a principal senão a mais criativa banda nacional.
A evidência, entretanto, ouve-se pondo o disco para rolar. Gil abre o disco com Frevo rasgado. Se o ritmo pernambucano é respeitado de cabo a rabo, a orquestração de Duprat é claramente influenciada pelos arranjos de George Martin ou, se é possível uma referência menos nobre, influenciada pelas orquestrações com que o selo inglês Immediate envolvia as composições que seus estúdios gravavam.
Segue-se Coragem para suportar, um tema nordestino típico que faz eco ao nordestino é antes de tudo um forte, de Euclides da Cunha. Diz Gil: lá no sertão quem tem/coragem para suportar/tem que viver para ter/coragem para suportar/e somente plantar/coragem para suportar/e mesmo quem não tem/coragem para suportar/tem que arranjar também/coragem para suportar/ou então/vai embora/vai pra longe/tudo que é nada/nada para viver/nada pra dar/coragem para suportar. A execução musical, no entanto, é feita com um combo roqueiro convencional: Os Mutantes.
O mesmo espírito, com um traço intenso de ironia e vontade de mostrar a que veio, anima Gil na regravação que fez de Procissão, sétima faixa do disco. A canção versa sobre a religiosidade que embala a miséria nordestina e a inoperância dos políticos - tema em nada rocker - é tocada pelas guitarras de Sérgio e Arnaldo Batista, numa levada francamente roqueira, com direito a ligeiras dissonâncias que não escondem o ar de deboche acompanhando o canto trágico de Gil.
É um simples exemplo. Prestem atenção a Caetano Veloso, a Tom Zé (em 1970, gravou Jimmy renda-se que não é possível escutar sem criar, no ouvido, o nome: Jimmy Hendrix) e, talvez o melhor exemplo, escutem a Banda Tropicalista de Duprat. O disco reúne de Flying a Lady Madonna, de Lennon & McCartney, a Que será? de Jair Amorim e Evaldo Gouvêia passando por Baden Powell, João de Barros, Lamartine Babo e roqueiros secundários como John Fred e The Cowsills. (gravadoras: lancem o CD deste disco, antes que algum pirata o faça!!!!)
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O título deste texto, Lunik 9, é uma composição de Gilberto Gil. Composição anterior à Tropicália. Aliás, pertence ao mesmo disco onde está gravada a primeira versão de Procissão, comentada acima.
Lunik 9 fala sobre a descida na Lua de uma cápsula soviética não tripulada e realça o desencantamento do satélite terrestre pela evolução técnica da humanidade: poetas, seresteiros, namorados/ correi/ é chegada a hora de escrever/ e cantar/ as derradeiras noites de luar. Tema que ficou caro ao rock adulto do final dos anos 60.
E falta falar do Som Imaginário e do Clube da Esquina.
Outra hora...
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