"Adivinhem só qual é essa", diz um surpreendentemente engraçadinho Thom Yorke, antes de começar a cantar "Creep". Era o terceiro bis do Radiohead dentro do festival Just a Fest, em São Paulo. Há mais de duas horas no palco, a banda finalmente fizera história por aqui.
Just a Fest - Los Hermanos
Just a Fest - Radiohead
Just a Fest - Radiohead
Just a Fest - Radiohead
Just a Fest - Kraftwerk
Foram quase dez anos de especulações, por parte de organizadores e imprensa. Quem nunca ouviu o boato "este ano o Radiohead vem"? Só o falecido Tim Festival quase trouxe a banda ao Brasil mais de uma vez.
Pois coube a um festival novato, surgido de última hora, fazer esse trabalho. Mesmo com a crise que abala a carteira dos produtores de shows internacionais, conseguiram uma vaga na agenda de lançamento do disco In Rainbows, lançado em 2007.
As previsões não eram animadoras. Trinta mil pessoas ensardinhadas em um descampado, longe da área central da cidade. No lineup, bandas díspares como Los Hermanos e os vovôs Kraftwerk, causando um "crash" de público fanático. Para piorar, o homem do tempo dava 70% de chances de chuva - na mesma semana onde a cidade quase submergiu.
Mas a tempestade se resumiu a nuvens ameaçadoras, e o cenário não foi tão ruim assim. O evento pecou naquela velha ladainha: desorganização na entrada do público, saída caótica e banheiros nada amigáveis. Em compensação, o som era impecável e o palco carregava os melhores telões dos últimos anos - mérito, provavelmente, da transmissão ao vivo por um canal de TV.
Hermanos reunidos
Se a noite foi histórica por causa do Radiohead, para parte do público o evento valeu pelo retorno da carioca Los Hermanos, em hiato que vinha desde abril de 2007. Era clara a divisão de público que nem deu trela para as atrações internacionais e chegou cedo para fazer festa com o quarteto.
Os anos fizeram bem aos Hermanos. A banda é outra no palco, se impondo com mais segurança em frente à platéia fanática. O ranço de "não estamos muito confortáveis com o sucesso" sumiu, assim como a rabugice com o coro pentelho que sempre cobriu as vozes dos vocalistas.
Fez bem ver os quatro reunidos, com a leveza de quem não está mais convivendo na estrada. Até o trio de metais, liderado pelo simpático trompetista Bubu e que não fazia mais parte dos últimos shows do grupo, marcou presença.
Marcelo Camelo e Rodrigo Amarante estão em outras praias - o primeiro em carreira solo, o segundo na "californiana" Little Joy, ao lado de Fabrizio Moretti e Binki Shapiro. As carreiras refletiram no show e mostraram que foi Camelo que ganhou mais projeção no posto de vocalista principal. Foi ele que angariou os maiores coros (como em "Todo carnaval tem seu fim" e "Morena"), enquanto Amarante ("Sentimental") se mostrou ainda mais low profile em sua presença indie, mesmo com todo seu carisma.
O repertório fez um passeio pelos quatro discos da banda, dando espaço até a músicas que eles não cantavam tanto durante as turnês - tipo a afrancesada "Cher Antoine", do segundo disco, Bloco do Eu Sozinho (2001). A velha "Anna Júlia" não deu as caras, mas virou piada na platéia: houve quem trocasse os pedidos do primeiro hit da banda por "Tchubaruba", sucesso de Mallu Magalhães, namoradinha de Camelo. Sinal que a banda mudou, mas o público também.
Alemães vintage
Enquanto a massa de fãs dos cariocas dava espaço para o público de Thom Yorke, os quatro integrantes do Kraftwerk preparavam seus laptops.
Foi a terceira passagem dos alemães pelo Brasil - a última no Tim Festival de 2004. Desta vez, o único membro original é Ralf Hütter, à frente da banda desde dos anos 1970 - Florian Schneider, o outro criador do Kraftwerk, partiu em novembro do ano passado.
Mas, ao contrário das bandas normais, esse fatores não são do tipo que podem atrapalhar a apresentação. Afinal, em suas últimas turnês, as verdadeiras estrelas do grupo são seus computadores, sintetizadores de voz e as sensacionais projeções no telão.
Como boa apresentação robótica, o show do Kraftwerk não tem grandes variações de repertório ou curvas de emoção. Nem um sample que travou no começo do show, em "The Man Machine", causou comoção no palco. A maior surpresa foi durante "Showroom Dummies", quando Hütter traduziu o verso final da letra: "Nós vamos ao clube / e começamos a dançar / Somos manequins".
No mais, o mais do mesmo que é sempre brilhante: "Models", "Tour de France", "Radioactivity", "Trans-Europe Express", "Autobahn"... A falta de cortinas do palco tirou um pouco da magia da apresentação, ao mostrar os técnicos trazendo nos braços os robôs que dançam em "The Robots". No final, a banda volta ao palco com suas roupas florescentes para "Music non-stop". O encerramento habitual para um "esquenta" de luxo para a atração principal.
No pé do arco-iris, uma banda de ouro
É fácil, quase clichê, dizer que o Radiohead é uma banda histórica, o nome mais importante da música nos anos 2000. Está tudo ali: da fase "patinho feio do britpop", no começo de carreira, passando pelas guinadas de OK Computer-Kid A-Amnesiac e chegando ao tapa na indústria de In Rainbows, oferecido em MP3 ao público a preço livre.
Mas essa impressão só ganha peso ao se ver o quinteto interagindo no palco, cada um com sua personalidade, funcionando como uma orquestra bem afinada. Ao centro, Thom Yorke parece suar para resumir em si as características dos colegas: a estranheza do guitarrista Johnny Greenwood e o porte do grandão Ed O'Brien, mais a técnica do baterista Phil Selway e até o jeito pimpão do baixista Colin Greenwood.
Yorke não é estranho à toa. E leva a sério o seu papel de anti-herói do pop. No primeiro gemido de "15 step", que abre In Rainbows e deu o pé na porta do show, o vocalista já tinha agarrado o público pela espinha. Nem precisou do "boa noche" a seguir, uma das suas raras frases.
Afinada e esperta, a sessão de descarrego dos ingleses também passa pelo palco e sua iluminação, com dezenas de grandes pilares refletores: as luzes seguem as cores do arco íris, esquentando e esfriando o espaço, e chegam a "chover" durante "Paranoid Android". A descrição soa cafona, mas é eficiente. Ao fundo, o telão com jeito de videoclipe é dividido com as câmeras individuais dos músicos, focalizando cada um de um ângulo diferente.
In Rainbows pautou as duas horas de show: a banda tocou o ótimo álbum na íntegra, levantando a noite com a forte "Reckoner", a linda "House of Cards" e "All I Need". Mas é nos seus outros hits que o Radiohead conquistou os fãs, que esperavam este show há mais de uma década.
Como a passagem por aqui era inédita, a banda fez questão de incluir faixas que não fazem mais parte do circuito de shows do lado de lá do Equador. Foi um resumão de tudo o que a gente perdeu nesse tempo todo.
Hail to the Thief apareceu pouco, mas deu o duelo de tambores abrindo "There There". Assim como Amnesiac que, além de "Pyramid song" (com Johnny Greenwood tocando sua guitarra com um arco de violino), gerou um dos pontos altos da noite, já no segundo bis: Yorke ao piano, tocando "You and Whose Army?" e encarando a platéia diretamente nos olhos (tortos) com uma câmera em close. E, claro, "Fake Plastic Trees", representando The Bends, o segundo álbum.
Os clássicos Kid A e OK Computer foram os mais lembrados. "Idioteque" levantou o coro, "Optmistic" foi o momento hipnose e "Climbing up the Walls" teve Yorke cantando de um jeito mais selvagem que nunca. Aqui e ali, o grupo se esforçava para surpreender e mudar os arranjos das faixas. Johnny, por exemplo, se divertia em usar um velho rádio para samplear emissoras locais durante algumas faixas, como "The National Anthem".
Depois do segundo bis (que acabou com "Everything in its Right Place"), a banda volta ao palco e Yorke oferece "Creep", o sucesso da sua outra encarnação, para acabar com a noite. Ele explode ao microfone, o público explode no coro e o palco explode em luz e interferência, como ainda não tinha acontecido.
É como se tivessem guardado algumas surpresinhas para a platéia ainda virgem. E mostra que, mesmo demorando, a banda aportou por aqui no momento certo - se essa passagem única acontecesse há cinco anos ou daqui a cinco anos, não teria metade da relevância que teve agora.