Começo de noite em São Paulo, eles entram marchando no palco. Um Napoleão, um corsário e um padre, com fogos pipocando no fundo de cena, prontos para enfrentar o jardim elétrico do Parque da Independência, como se trinta e tantos anos fossem ontem, como se nada tivesse acontecido. Ah, baby, há quanto tempo. Os Mutantes estão ali, sorrindo e pulando, ante uma platéia que cresceu ouvindo sem saber os seus filhotes pelo mundo.
4
2
5
1
3
capa
Certas coisas só se acredita vendo. Mesmo com as notícias de shows pela Europa e EUA, mesmo com um DVD recém-lançado, não me leve a mal, as provas não convencem. Ali era o verdadeiro retorno da verdadeira banda de rock brasileiro. Algo só comparável ao retorno dos Beatles - mas, pena para os ingleses, os nossos estão bem vivos.
A situação, num improvável túnel do tempo, remete ao começo dos anos 70. Rita Lee acabou de abandonar os microfones, mas foi substituída e a banda, apesar de algumas rugas aqui e ali, toca a sua boa vida. Uma fase chata progressiva? Brigas, acidentes, fofoquinhas? Vê, vê que tudo mudou. Está tudo bem, tudo bom.
O bom humor era patente ali, mesmo antes das risadas tresloucadas de "Dom Quixote", a primeira música. Ninguém lembrava sequer do aniversário da cidade. Pra quê? Estavam todos ali para ver Sérgio Dias empunhar sua velha guitarra, Arnaldo Baptista sentar-se sob seus teclados e Dinho Leme retomar as baquetas, nosso presente de ano novo. Ah, bicho, não chore ainda não. A coisa toda está só começando.
O show seguiu exatamente o mesmo setlist de 21 músicas do DVD, gravado no primeiro show em Londres, em 2006. Um difícil best of das grandes faixas mutantes. A vantagem é ignorar as chatices do registro, como as legendas erradas, o som dessincronizado ou as versões em inglês para gringo ver.
E se naquela época os Mutantes entraram no palco com um mês de ensaio corrido, aqui eles chegam louvados por meses de turnê pelos EUA. Mas não vêm afiados em tecnices, e se jogam no calor do momento. A quentura que faz Sérgio errar notas ou a letra de "Balada do louco". Desbunde é emoção ou o quê?
A banda não é mais aquela, é verdade, e conta com o aparo de um grupo de apoio de sensacionais instrumentistas, mais dois backing vocals. Mas isso não é um demérito e torna toda a bagunça dos arranjos mais consistente e interessante.
E está tudo ali, como deveria ser, principalmente entre os dois irmãos geniais. Sérgio liga tudo com sua veia de maestro e mostra, na guitarra ou no violão, que não está entre os grandes guitar heroes brasileiros à toa. E Arnaldo, com seu jeito terno meio desligado, conquista qualquer um - o arrepio foi inevitável nos seus vocais solos de "Cantor de mambo" e "Dia 36".
O fator delicado seria Zélia Duncan, recrutada para ocupar o espaço de Rita Lee. A vocalista original só apareceu nas capas dos livros e discos que os fãs empunhavam no lugar e - duro dizer isso - não fez muita falta. Zélia se provou a escolha perfeita para a vaga. Esperta, ficou no seu lugar de coadjuvante da glória, glória alheia. Não se intimidou com a missão e, ao mesmo tempo, não tentou puxar a estrela para si. Sua voz grave também não foi um problema, graças à ajuda preciosa da backing vocal. A moça é cantora versátil e vê-se que treinou a garganta para estar ali - preste atenção à sua performance de "Fuga n° II" para entender. Esquece, não pensa mais. Ela está onde deve.
Outro momento emocionante foi a participação de Tom Zé, que abriu a noite ao lado da Nação Zumbi. Tropicalismo na veia, ele veio e cantou suas duas canções "Dois mil e um" e "Qualquer bobagem" - a única que não está no DVD, em dueto torto com Arnaldo. Só faltou mesmo uma homenagem ao recém-falecido maestro Rogério Duprat, tão importante para a banda, pelo menos em "Panis et circenses".
Como não podia deixar de ser, os Mutantes conquistaram as tantas mil pessoas que lotaram as margens do Ipiranga, finalmente retomando o seu lugar devido. Tanto que voltaram para dois bis, com outra chance de Sérgio errar novamente "Balada do louco".
E quer saber? Nunca a letra dessa música fez tanto sentido. Brrlll.
Confira abaixo a galeria de fotos do show (fotos de Gab Marchi)