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O velho e o novo rock num copo de Campari
Um festival em uma velha fábrica desativada, longe do dito centro de São Paulo, com o patrocínio de uma bebida esquisita e sob a sombra de uma imensa chaminé em formato de caneta Bic. Só por isso a primeira edição do Campari Rock, que aconteceu na cidade durante o último final de semana, ganha de longe o título de evento menos usual do ano.
Com boa curadoria, o Campari se dedicou a fazer um pequeno balanço do novo rock produzido por aqui e apresentar ao público brasileiro algumas pérolas do cenário internacional, além de contrapor, no mesmo palco, dois momentos distintos do rock americano: a novíssima dupla The Kills e a clássica banda de Detroit MC5.
A abertura dos trabalhos ficou nas mãos da primeira atração internacional do lineup, o duo franco-americano Berg Sans Nipple. Grata surpresa, a dupla só precisou de uma bateria (muito bem tocada) e um conjunto de teclados e sintetizadores para fazer, já de cara, um dos melhores shows do festival. A música do BSP vem construída pela repetição rítmica e hipnótica dos loops eletrônicos e batidas percussivas, com espírito quase tribal. A imersão dos integrantes no som que fazem durante o show é de impressionar.
A partir daí, se seguiram os outros dezesseis nomes escalados, que flutuaram entre a perfeição e o supérfluo. Entre as atrações internacionais "menores", vale um registro também para o quase hippie e simpaticíssimo quarteto sueco Dungen, desconhecido por aqui, mas que trouxe um folk psicodélico dos anos 70, cantado na sua língua natal. Calminhos na maior parte do tempo, quebraram com primor a seqüência guitarreira do segundo dia.
Por outro lado, foram dispensáveis as apresentações da banda americana Apside e da dupla de DJs escoceses Optimo. Os primeiros, apesar de ter um baixista brasileiro, não trouxeram nada de fresco no seu show que justificasse sua "importação". Mostraram um rock básico sorvido do mesmo copo do Oasis - coisa que pode ser encontrada em centenas de bandas de garagem por aqui - e pose demais dos integrantes sobre o palco. É do tipo de banda que ainda precisa aprender que rock não se faz só com pulos, posturas, caras e bocas - tem que ter um pouco de sangue na caixa de som também.
Já os Optimo vieram superestimados - pela organização e pelos ótimos discos lançados lá fora - para encerrar a primeira noite do evento. Mas, entre uma e outra falha nos laptops, chegaram a emendar "Blue monday", do New Order, com "Sweet dreams", do Eurythmics, obviedade das obviedades para qualquer DJ novato. Não precisava.
Entre os representantes nacionais na escalação, os indies não fizeram feio, esbanjando profissionalismo e qualidade sonora. Merecem destaque maior os momentos dos Forgotten Boys, do Objeto Amarelo (que merecia um horário melhor no lineup), e dos gaúchos Irmãos Rocha!. Além, claro, das veteranas Mercenárias, ressuscitadas dos anos 80 para o melhor show pátrio do festival.
Os brasileiros também foram responsáveis por algumas das cenas antológicas do festival. Da performance de Tatá Aeroplano, do Jumbo Elektro, com seu extintor, à queda do palco da vocalista Clara, no final anárquico do show do Cansei de Ser Sexy, durante o playback do hit "Superafim". O momento CPI do país também rendeu, com a ácida canção de protesto "contra la populación", dos portunhóis Los Pirata, e as Mercenárias dedicando uma raivosa música ao presidente Lula.
Mas algumas das bandas escaladas não renderam tanto. Os campineiros Muzzarelas, apesar do rock bom e vigoroso, pareciam deslocados na salada do festival. Assim como o electro-kitsch do Freakplasma, que teve seu duvidoso ápice na versão de "Video killed the radio star", com a vocalista vestida de bolo de noiva e robôs gigantes de papelão pulando pelo palco, numa visão distorcida de um programa qualquer da Xuxa. Bizarro, mas não quer dizer que seja bom.
Na celebração do novo rock produzido no país, fez falta a presença do trio Thee Butchers Orchestra, que chegou a ser escalado para o festival num primeiro momento, mas acabou de fora.
Sexo, pose e roupas justinhas
Apesar da curta carreira, iniciada no começo da década, os americanos The Kills foram recebidos como legítimos superstars pela platéia moderninha de plantão no encerramento da primeira noite do CR.
Abusando do visual, os dois se esforçam em parecer figuras importadas da Nova York idealizada pelo Velvet Underground. Mas a pose, aqui sim, tem coerência e é peça chave no show dos americanos.
VV, a vocalista, entra em transe durante as músicas e dança e canta com movimentos secos e nervosos, tremendo, quase como em uma overdose. Providencialmente, tem o lábio cortado ao lutar com o pedestal do microfone (um dos três diferentes que chegou a usar durante o show) e esforça-se em vomitar no fundo do palco, tentando se livrar de algo supostamente preso na garganta.
Hotel, que cuida da guitarra e da bateria eletrônica, se põe mais firme, mas não menos chapado. De olhos arregalados, empunha a guitarra como uma metralhadora e estremece a cada acorde dissonante das músicas. Ambos tocam a maior parte do tempo olhando fixo para alguma entidade além-platéia.
O show dos Kills em São Paulo foi quase todo calcado em seu segundo disco, No wow, começando pela faixa título. Ao vivo, o som da banda duplica a energia registrada nas gravações, tornando tudo melhor. A combinação suja e coesa da guitarra de Hotel com a bateria pré-programada remete ao underground de qualquer metrópole ocidental, de bares pequenos, esfumaçados e de pouca luz. A voz desesperada da vocalista completa a cena, fechando em um show quase impecável.
Os melhores momentos são os duelos de VV e Hotel, com os microfones frente a frente, tocando e cantando olho no olho, como em "I hate the way you love", parecendo gatos se desafiando, em tensão quase sexual. Não à toa, o show acabou com um coito de guitarras, com ele se esfregando entre as pernas dela.
No final pós-orgásmico, a afetação e a tremedeira se vão e os dois agradecem, "normais" e com sorrisos no rosto.
Tiozões do rock
Enquanto a primeira noite ficou nas mãos dos novatos, o encerramento do Campari Rock foi na base da velharia de alto estilo, com o show do MC5, banda ressuscitada diretamente dos anos 60/70.
O Brasil já está mais do que acostumado em ser a salvação da lavoura para bandas que retomaram uma carreira depois de anos separados, em turnês sem o brilho original - do eterno Creedence aos Sex Pistols. Mas aqui a coisa foi diferente. E bastou o primeiro solo de guitarra de Wayne Kramer para que a banda de Detroit mostrasse a que veio, jogando qualquer desconfiança por terra.
Os MC5 que restaram da formação original - Dennis Thompson e Michael Davis, além de Kramer - estão longe de lembrar os jovens politicamente revolucionários que movimentaram o cenário punk na sua gênese, abusando do clichê sexo-drogas-rock n roll. No palco, ao lado do convidado Marshall Crenshaw, encarnam a figura simpática dos tios do rock, de cabelos brancos, figurino light e muito bom-humor.
A energia punk fica por conta do Mudhoney Mark Arm, que entrou cantando "Shakin Street" e não saiu mais, dividindo os vocais do resto do show com Kramer e pulando pelo palco, comprovando toda sua fama de showman e ocupando com capricho o lugar de Rob Tyner, falecido vocalista da banda.
O setlist do show passeou pelos clássicos maiores e menores da curta carreira da banda: "The american ruse", "I want you right now", "Tonite", "Motor city is burning", "Rocket reducer # 62". A lista é interminável para a hora e meia de show, que veio repleto de jams entre os músicos.
Carismático, Kramer fez longos discursos para a platéia ("é uma grande honra estar aqui em São Paulo"), armou corinhos durante as músicas e até rebolou na frente do palco, de costas para o público. Em certo momento, celebrando os dois membros originais mortos da banda, invocaram os espíritos de Tyner e Fred "Sonic" Smith, dedicando "Over and over" a eles. Era o fim do primeiro ato.
O intervalo não durou muito, e a banda logo voltou ao palco para o ápice do show, o momento que todos esperavam, com a deixa de Kramer: "its time to kick out the jams, motherfucker!". Houve quem chorasse, na platéia e nos bastidores, durante o clássico hino da banda.
O show ainda se alongou por mais um segundo bis, quando parte do público já tinha dispersado, com Mark Arm se jogando para um stage dive, cantando alucinado nas mãos da platéia restante. São Paulo ganhava, ali, mais um show histórico no currículo.
Problemas
Na sua primeira edição, o Campari Rock foi excelente no quesito produção, no mundo paralelo de segurança, banheiros, bar e comida. A velha fábrica desativada no bairro da Lapa é um achado, espaço excelente para um evento desse porte.
O maior defeito, porém, atingiu aquilo que merecia o maior cuidado por parte da organização: o som. O festival levou para o palco grande a falta de infra-estrutura costumeira do mundinho indie, elevando os problemas à enésima potência.
Nos dois dias de shows, foram poucas as bandas que não enfrentaram problemas. Daniel Belleza, por exemplo, fez metade do seu show sem o som do baixo. E a apresentação dos cariocas Autoramas passou longe do que deveria ter sido, por conta de um microfone com o volume insuportavelmente fora de controle.
Além das falhas pontuais, a acústica geral também atrapalhou. A potência das caixas não dava conta do gigantismo do galpão principal da velha fábrica e, quem não estivesse logo em frente às bandas, pouco discernia do que acontecia sobre o palco, graças ao som embolado.
E no final de tudo, fica a pergunta:
Quem, afinal, realmente bebe Campari hoje em dia?
* Fotos: ALEX KOROLKOVAS