É inegável o talento que Hugh Laurie tem como artista; também é indiscutível o respeito dele pelo jazz e blues americanos. Contudo, é impossível deixar de se perguntar se todos os presentes no Citibank Hall, em São Paulo, estavam lá para ouvir e apreciar os tesouros musicais ou se para paparicar e presenciar o ex-Dr. House ("eu costumava ser ator", Hugh desabafou).
hugh-laurie
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O monstro criado pelo papel do médico tem seus benefícios, é claro. Por mais meticuloso que tenha sido em suas pesquisas, visitando e revisitando o jazz de New Orleans e canções tradicionais do Delta Blues, é difícil imaginar outro músico de jazz estreante (Hugh e sua Cotton Bottom Band possuem apenas dois discos) enchendo uma casa de shows de cinco mil lugares com ingressos entre R$120 e R$450 (mais taxa de conveniência). É clara a influência dos oito anos de Hugh como Dr. House.
O repertório, com 26 músicas em mais de duas horas de show, foi recheado de interpretações que ilustram a rica cultura americana. Louis Armstrong cumprimenta Leadbelly; Ray Charles, em um papo descontraído com Chuck Berry, é observado pelo jovem Elvis Presley; Jelly Roll Morton insiste em se auto-intitular inventor do jazz enquanto Bessie Smith o olha de soslaio; Dr. John, na coxia, dá um sorriso de canto de boca. O espetáculo é um grande tributo do britânico Hugh ao verdadeiro legado americano: as canções do povo (ou o “traditional”), que tem sua autoria diluída em si própria - mais do que saber de quem é, o importante é entender de onde vem.
Como de costume, a porção de visitante estrangeiro apareceu em comentários sobre caipirinha e ao terminar o show com uma versão da pasteurizada "Mas Que Nada", de Sérgio Mendes.
Hugh sabe entreter - com uma divertida presença de palco que beira o chaplinesco - e talvez sabendo de sua voz relativamente fraca (uma versão anêmica do cantor e pianista de New Orleans, Dr. John, assumidamente um dos heróis de Laurie), ele recrutou ótimos músicos para o acompanhar. Entre eles, duas vozes femininas que alternam com Hugh o vocal principal: a experiente Jean McClain e a belíssima guatemalteca Gaby Moreno. O ambiente criado é de profundo respeito e democracia - com o cantor insistindo em reverenciar seus parceiros.
O mesmo respeito não se percebe tanto na plateia, contudo. E aí está o lado ruim do monstro. O assédio que Hugh Laurie sofreu, e sua forma um pouco inocente e inexperiente de lidar com ele, dificultou alguns momentos do show. Após receber uma rosa de uma fã da platéia, Laurie viu inúmeras pessoas se aproximarem do palco e entregarem-lhe de tudo: camiseta da seleção brasileira (que ele usou no bis), bandeira nacional, cartas, fotos… Ele fingia uma impaciência bem-humorada, mas não conseguiu controlar a plateia durante um tempo.
O fato é que o show consegue agradar a todos: quem quer ver o médico galã se delicia com as caras, bocas e brincadeiras; e quem está lá para uma viagem a New Orlenas do início do século passado também chega no seu destino.
Resta saber se Hugh Laurie irá usar em seu ego a muleta de seu alter-ego, ou se conseguirá desligar os aparelhos deste personagem em coma. Só o tempo dirá.
Abaixo, o repertório do show com alguns do nomes do autor ou intérprete famoso:
Repertório
Iko Iko (já interpretada por The Dixie Cups)
Let the Good Times Roll
Evenin' (já interpretada por Count Basie)
Buona Sera (já interpretada por Louis Prima)
What Kind of Man Are You (de Ray Charles)
Day & Night
Kiss of Fire (já interpretado por Louis Armostrong)
So Damn Good
Send Me to the 'Lectric Chair (já interpretada por Bessie Smith)
Mystery Train (já interpretada por Elvis Presley)
You Don't Know My Mind (de Leadbelly)
The Weed Smoker's Dream (de Joe McCoy)
Lazy River
Didn't It Rain (já interpretada por Sister Rosetta Tharpe)
Careless Love (tradicional)
Get Out Of My Life Woman
My Journey to the Sky
Wild Honey (já intepretada por Dr. John)
Tipitina
I Hate a Man Like You (de Jelly Roll Morton)
I Wish I Knew How It Would Feel
Green Green Rocky Road (já interpretada por Dave Van Ronk)
Go to the Mardi Gras
Changes (de Alan Price)
You Never Can Tell (de Chuck Berry)
Mas que nada (de Sérgio Mendes)
*Pedro Couto é jornalista e escreve do Dylanesco, site sobre Bob Dylan